Uma teosofia carnavalesca (1)

“Madame Blavatsky”, peça de Plínio Marcos, gera um rebatimento reflexivo que pensa a função das artes em geral
Ilustração: Tereza Yamashita
01/04/2025

Helena Petrovna Blavatsky — nascida em 1831, em Ekaterinoslav (atual Dnipro), território ucraniano que era então parte do Império Russo, e falecida em Londres, 1891 — foi o tema de uma peça de Plínio Marcos escrita em 1985, que se tornou o seu maior sucesso dos anos 1980. Não vou me deter aqui sobre a difícil questão de investigar quem foi, de fato, Helena Blavatsky, mas centrar-me exclusivamente no significado da peça para a dramaturgia de Plínio Marcos. No entanto, para não deixar de dizer o mínimo, sabe-se que Blavatsky foi a fundadora da Sociedade Teosófica e sistematizadora importante dessa filosofia espiritual que ainda hoje tem seguidores entusiastas por toda parte, incluindo o Brasil. Aquém ou além do que fosse verdadeiro a respeito dela, a fama de Blavatsky se deveu a um caldo inesperado de filosofia hindu, ciência de vanguarda, ecumenismo religioso, práticas excêntricas, e até mesmo escandalosas, que deram margens a acusações de lesbianismo, de uso indevido de poderes paranormais e até de fraudes aplicadas contra gente rica e crédula.

Na peça de Plínio Marcos, intitulada justamente Madame Blavatsky, a primeira coisa a notar é a composição da cena de abertura, que é de fato estrutural em todo o espetáculo, repetindo-se regularmente em seu andamento e obrigando o desenvolvimento cronológico a se curvar numa espécie de looping histórico. Nela, ainda, cada ator em cena — e muitas vezes, eles são muitos a ocupar o palco ao mesmo tempo — é caracterizado e vestido como personagem do final do século 19, um tipo de preocupação impensável nas peças mais conhecidas de Plínio Marcos até então, nas quais o reduzido número de atores bem como o cenário parco eram já uma marca do seu teatro brutalista.

Outra novidade dessa abertura em relação ao seu teatro anterior é o fato de cada ator ter ao seu lado, segundo a rubrica de Plínio, “uma mesinha de rodas com muitos apetrechos que serão usados durante a peça: perucas, bigodes, barbas, chapéus, óculos, roupas etc.”. Além disso, segundo a rubrica inicial, os atores deveriam posicionar-se no palco de maneira absolutamente imóvel, “como se fossem marionetes”, e apenas depois de tocar determinado sino, ouvido também pelos espectadores, eles deveriam se movimentar.

Quer dizer, embora as personagens estejam caracterizadas de maneira verossímil, isto é, com vestimentas e acessórios historicamente adequados, o cenário contraria o estatuto de representação ilusória, pois a mesinha com os truques de caracterização denuncia, à maneira brechtiana, o seu caráter de efeito teatral. A peça, afinal, parecia dar mais a ver o trabalho de fingimento construído pelo ator do que a ilusão histórica que o espetáculo supostamente visava produzir.

Também fica claro para o público o dinamismo econômico da peça, na qual os mesmos atores usam uma grande variedade de caracterizações, máscaras e disfarces, segundo a variedade das cenas. Vale dizer, o espetáculo explicita todo o artifício posto em movimento pelos atores a fim de produzir surpresa e maravilhamento, mas menos com a história do que com a máquina engenhosa que permite que ela seja contada. Como quer que se entenda a narrativa da vida de Helena, é preciso incorporar ao seu núcleo esse processo de ostentação das máscaras usadas pelos atores, e, portanto, de evidência da encenação como um repertório de truques. O fenômeno parece significar a incorporação tardia ao teatro de Plínio de certas técnicas de “estranhamento” do teatro épico moderno, mas isso é feito de modo a produzir não apenas uma crítica do real, mas também certo elogio do ator e da falsificação astuta no cerne da sua vocação dramática.

Está evidente, portanto, que o próprio teatro está no centro da ação representada no palco. Além de contar a vida particular de um personagem histórico, a peça gera um rebatimento reflexivo que pensa também a função da arte teatral e, por extensão, das artes em geral. Ou seja, se a peça compõe uma narrativa apologética em torno de uma das criadoras da Teosofia, ela o faz compondo, em paralelo, uma compreensão algo esotérica do teatro, no qual parece ser inútil tentar separar a reflexão a que ele pode levar, como no teatro épico, da “mágica” que ele produz, como é notável numa concepção circense do teatro. A ser assim, estamos dentro de um metateatro que não pretende exatamente desmascarar as ilusões da representação, ou acusar enfim os seus limites, mas sim, quase numa direção oposta, exaltar a habilidade das máscaras como forma privilegiada de interpretação da vida. Mas, claro, não se trata de dizer que a máscara mente, mas sim que, no fundo, ela é a forma mais comprometida com a realidade.

Ajusta-se a isso também a apresentação pouco linear da narrativa, a tal ponto que o enredo se compõe praticamente como um implícito a ser reconstituído pelo auditório a partir de uma sucessão de quadros ou personagens significativas. Assim, da cena inicial de uma Helena “velha e gorda”, sendo atacada por murmurações confusas advindas de diversas ordens institucionais — como “poder da Igreja”, “Estado”, “autoridade”, “dogma”, “Reino Britânico”, “protestantes ingleses” etc. — que a tratam como “charlatã” e “impostora”, passa-se sem mediação à cena de uma Helena “jovem” que assiste à morte da mãe. E justamente quando a mãe menciona os sinais da excepcionalidade precoce de Helena, eles são materializados numa outra série de personagens que mistura tempos muito diversos da vida de Helena. Ou seja, a série parece apontar menos para acontecimentos históricos (embora devam sê-lo) do que para forças contraditórias a agir no seu destino extraordinário, a saber: a cigana leitora de tarô, que lhe prognostica sacrifício e renúncia; o pai fraco, sensível aos ataques dos jornais; a mãe vivaz, que lhe proporcionou uma educação liberal e mesmo feminista (“mulher não é um objeto”); e o padre abusivo, que diante da discordância de Helena, se propõe a exorcizá-la.

A sucessão dessas personagens vai assinalando a excepcionalidade de Helena e culmina na figura fantástica e obscena do “bode Blavatsky”, com uma “túnica de general e com um falo enorme”. Trata-se de uma representação cômico-grotesca do primeiro marido de Helena, o qual, em plena lua de mel, corre atrás dela a proferir obscenidades numa linguagem contemporânea chula (“Que é, esposinha querida, acha grande? Mas eu vou enfiar devagar.”). Naturalmente, já pela farda de general, a fantasia do bode estuprador aludia necessariamente não apenas aos sátiros antigos, com a sua incontinência sexual, mas também à violência representada pelos chefes da ditadura militar brasileira. Pois é preciso lembrar que, finalmente, em 1985, ano de estreia de Madame Blavatsky, os militares deixavam o poder, após um interminável período de 21 anos, durante os quais uma brincadeira como essa certamente custaria caro, como custou de fato para a obra de Plínio Marcos, toda ela censurada e impedida de ser representada.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho