Um grande escritor: Emilio Lussu

"Um ano no Altiplano" é um livro formidável e impressiona com o seu mergulho vertical no desespero do front
Ilustração: Taise Dourado
30/03/2019

Virei o ano lendo Um ano sobre o altiplano, do sardo Emilio Lussu (1890-1975), cujo original é de 1938, na excelente tradução de Ugo Giorgetti. O conhecido cineasta e cronista paulistano, de origem toscana, revela aqui mais um empenho de sua arte requintada, o que não chegará a ser surpresa para quem conhece os seus filmes, nos quais a literatura, por vezes, disputa com o cinema o protagonismo da cena.

O livro foi lançado no Brasil, em 2014, sem alarde, pela editora paulistana Mundaréu (como consta da lombada) ou Madalena (como está na ficha catalográfica). Seja como for, Um ano no Altiplano é um livro formidável e acredito que, quem o ler, não deixará de se impressionar com o seu mergulho vertical no desespero do front e, particularmente, com os acontecimentos da frente italiana da primeira guerra, mesmo hoje pouco estudados e esclarecidos.

Isto dito, está claro que Lussu é ainda subvalorizado como escritor. Na Itália, embora muito conhecido, a sua literatura acabou ofuscada pela sua atividade militar e política na luta antifascista, primeiro como co-fundador do Partito Sardo de Azione (PSd’Az), e depois do movimento Giustizia e Libertà, o que lhe custou pelo menos um ferimento grave, além de um exílio de 14 anos. Também lutou na Primeira Guerra Mundial, na Guerra Civil Espanhola e na Resistência Italiana.

Em português, que eu saiba, há pelo menos dois outros livros dele que podem ser encontrados em sebos: Marcha sobre Roma… e arredores – O facismo [sic] visto de perto (cujo original é de 1933), lançado no Brasil já em 1937 pela Editora carioca Cultura Política, e Teoria da Insurreição (original, de 1936), que possuo numa edição lisboeta da histórica Livraria Ulmeiro, sem data, mas que acredito ser de 1969 ou 1970.

Em relação a Um ano sobre o Altiplano, por mais que Lussu, em mais de uma ocasião, proteste não ser romancista e que o livro deva ser pensado como relato memoriográfico, eu só concordaria com a afirmação se valesse na Itália o modelo do romance romântico francês, com estrita exigência de a unidade romanesca — o que absolutamente não é o caso. Tal modelo jamais prevaleceu ali, o que dá notável originalidade e diversidade à produção italiana no gênero.

Com Lussu, as ações funcionam mais como recolha de episódios, e, deste modo, estão mais próximas da ideia de novela, e ainda da de história, tal como estabelecida, por exemplo, no panegírico antigo, onde se celebra ou critica determinado feito associado a uma pessoa, batalha ou cidade. No caso de Um ano no Altiplano, Lussu aproxima-se mesmo de uma espécie de panegírico fúnebre, em que as ações do momento decisivo de enfrentamento da morte são sempre as que medem melhor o tamanho de um caráter.

No entanto, na mesma medida em que Lussu destaca essa medida heroica que se apresenta em combates onde se joga a sobrevivência, ele também acentua, com intensidade rara, a presença da loucura no campo de batalha, no quadro geral das estratégias e razões da guerra. Eis aí: é a loucura, e nenhum outro tema, que detém o nervo da narrativa de Lussu, manifestando-se nas elucubrações dos generais e desdobrando-se em cascata pelos oficiais, até chegar às ações do front.

Especialmente nos comandantes se caracteriza a extensão nociva desse desajuste psíquico, tanto porque o que ordenam tem maiores consequências, como porque vivem uma alucinação coletiva, derivada da mitologia da “arte da guerra”. A maneira como Lussu a desvenda é impressionante, revelando por meio de atos muito palpáveis que, no fundo, os grandes movimentos da estratégia de guerra não passam de efeitos irracionais de convenções irreais —, vale dizer, que atendem mais a regras abstratas, anacrônicas, do que a objetivos pragmáticos, que tenham por finalidade a vitória, ou a menor perda de vidas humanas.

Há episódios maravilhosos a esse respeito no livro: de todos, o que mais me impressionou foi o do Malor Melchiorri, que ordenou o fuzilamento de uma companhia inteira, a qual, longe de se amotinar, apenas tentava se abrigar do fogo amigo da própria artilharia, completamente descalibrada em seus cálculos de tiro. Também, magnífico, é o episódio em que um esquadrão absurdo de esquiadores, mantidos no front em estado miserável e sempre esfomeado, promove um ataque minuciosamente coordenado à Intendência para saquear o estoque secreto de presuntos e mortadelas.

O esquadrão era chefiado por uma das personagens mais extraordinárias do livro, o tenente Ottolenghi, anarquista que apenas vê carnificina inútil na guerra, de modo que, em seu raciocínio implacavelmente lógico, se ela tiver de ser feita, deveria voltar-se contra os próprios generais, que estão a serviço dos especuladores que fazem da guerra um negócio. Por mais macabro que seja o negócio, e que todos saibam dele, noções obscuras, de fundo nacionalista, impedem que as pessoas realmente se convençam de que o mais sensato seria interrompê-lo.

E não apenas isso: como argumenta Ottolenghi, uma vez convocada ao campo a besta da guerra, a lógica desencadeada torna-se autônoma, incontrolável, sem render conta a nada mais, e esse pesadelo feito de pedaços de vida se desdobra, por si só, até quando explodem os massacres, e o seu horror se expõe, por inteiro, triunfante e obsceno.

Mas há tantos outros grandes momentos! Falo desses, apenas porque vieram mais rapidamente à minha cabeça. Essa variedade exemplar pode remeter a um aspecto estrutural da narrativa de Lussu: mais que avançar em torno de uma história unificada, a narrativa obedece a diversos núcleos de episódios memoráveis, cada um deles quase que isolado em seu próprio estupor, juntamente cruel e cômico.

Os afetos opostos e acumulados numa única cena são, em parte, o segredo da grandeza da escritura de Lussu. Nunca se está diante de uma situação simples, ainda que as situações sejam muito bem delimitadas. Por exemplo, um memorável debate entre os oficiais, após um dos muitos fracassados ataques à posição inimiga, constitui-se de tal forma que cada frase é verdadeira nela mesma, ainda que todas sejam contraditórias entre si — e talvez internamente, dentro de si mesmas.

Não é um mundo em que a lógica única funcione e que empurre o romance para frente, como se costuma pensar. Aqui, cada ação incompleta ou pergunta mal resolvida funciona como uma clareira desconfiada dentro do cenário de guerra, um intervalo mais incômodo que descansado, o qual, entretanto, nunca é suficiente para esclarecer o móvel das ações.

No ataque seguinte, o que se libera com as bombas lançadas contra os inimigos não são os avanços dos soldados em direção a um objetivo plausível, mas o inferno em que nos metemos, todos nós, quando a loucura toma as rédeas da vida — e não apenas a loucura da ganância, pois a loucura é totalitária, e não admite fronteiras: quando ela reina, as razões são apenas artifícios feitos de sombras e delírios.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho