Três tons de cinza

Os “Sermões”, do padre Antônio Vieira, servem como experiência objetiva da forma literária
Ilustração: FP Rodrigues
27/02/2019

Desde que os Sermões de Quarta-feira de Cinza, do jesuíta português Antônio Vieira (1608-97), tornaram-se tema do vestibular da Unicamp, muitos jovens estão sofrendo com eles. Pena! Mas quem sabe alguns poucos estudantes descubram que há algo especial ali, reflitam a sério sobre o assunto e façam a diferença que pode dar sentido à tarefa indigesta. Alguma esperança sempre há, e é nela que repousa a continuidade do jogo — nesse caso, o jogo da literatura, que é o que me interessa mais, embora seja apenas uma alternativa entre tantos outros jogos à disposição dos jovens.

Padre Vieira pregou três sermões dedicados à cerimônia de Quarta-feira de Cinza, que marca o início do período quaresmal do calendário católico. Os primeiros dois não oferecem dificuldades de datação. Embora na editio princeps dos Sermões, o primeiro deles apareça como sendo de 1670, Vieira corrigiu em seguida a data para 1672. Este é o ano correto, pois, no exórdio do segundo sermão, datado de 15 de fevereiro de 1673, Padre Vieira faz referência a outro Sermão de Cinza pregado por ele no ano anterior.

A datação do terceiro sermão é mais difícil. Na edição seiscentista, há apenas a indicação de que o autor o compôs, mas não chegou a pregá-lo, por ter adoecido. Esse tipo de explicação, entretanto, não é totalmente fidedigna. Muita vez, Vieira a usa como desculpa para safar-se de compromissos que não lhe interessa cumprir. E mesmo que a referência à doença fosse verdadeira, não ajudaria muito a precisar a data, pois são muitas as ocasiões em que Padre Vieira se queixa de achaques. A levá-las ao pé da letra, estaria morto muito antes de morrer com quase 90 anos.

Há outras pistas, porém. Uma delas: de volta a Lisboa, em 1675, Padre Vieira logo percebeu as resistências na corte à sua presença e sofreu com a indiferença do Príncipe D. Pedro por seus préstimos. Agastado, retira-se para a quinta que a Companhia de Jesus possuía em Carcavelos. De lá, em 20 de junho de 1677, Vieira escreve o seguinte a Duarte Ribeiro de Macedo, embaixador português em Paris: “Agora me parece que começo a viver, porque vivo com privilégios de morto. Pois esta bela expressão — “privilégios de morto” — é exatamente a mesma que já usara no segundo Sermão de Cinza e que vai retomar também no terceiro.

Ou seja, é possível que, por essa época, Vieira andasse às voltas com a preparação desse último sermão de Cinza. Também reforça a hipótese de que o jesuíta o escrevia nestes primeiros anos de retorno a Lisboa os vários convites feitos, em 1675, pelo Capelão-mor do reino, D. Luís de Sousa, para que voltasse a pregar na Capela Real e na Sé —, uma incumbência da qual inicialmente se escusara “com o pretexto da velhice e falta já dos dentes”, mas cuja “verdadeira razão”, em suas próprias palavras, era: “(…) porque não quero que me ouça quem me não quer ouvir”.

Enfim, são hipóteses apenas, mas ajudam a situar o período no qual o terceiro sermão foi escrito, possivelmente entre 1675 e 1677. Apenas anoto que esses esforços de datação não são supérfluos: no caso do gênero oratório, a referência temporal, muitas vezes, oferece a chave de sua decifração. Por outro lado, não significa que os sermões sejam incompreensíveis sem o prévio conhecimento das suas circunstâncias — o que, afinal, em certa medida, pela própria distância temporal, sempre acaba ocorrendo quando nos dispomos a lê-los quase 400 anos depois que foram produzidos.

São lacunas que exigem algum esforço do leitor, pois, pela constituição do gênero, os sermões jamais se pretendem imunes às circunstâncias históricas da pregação. Mesmo quando especulam sobre temas gerais, tratam sempre de buscar os preceitos que os associem à época e ao auditório particular que os ouve. A “razão oculta” que os sermões engenhosamente encerram ajusta teologia política e moral casuísta à ocasião da pregação. O próprio Vieira já o dissera: “Não sou de fazer mistérios dos acasos; mas folgo de fazer doutrina da ocasião”.

Não há tempo de examinar aqui cada um dos três sermões, mas vou tentar resumi-los, de maneira radical. Há um aspecto que está presente em todos eles: o acento posto menos no gozo da bem-aventurança post mortem do que a convicção de que a morte livra o homem de males tremendos. No primeiro sermão, livra-o das penas eternas que castigam as faltas cometidas em vida; no segundo, livra-o do transe tremendo da própria hora da morte; no terceiro, livra-o das atribulações dos negócios do mundo. Visto pelo ângulo oposto, pode-se dizer que o terceiro sermão acentua a quietação proporcionada pela morte; o segundo ressalta os recursos necessários para dominar o medo implicado nela; o primeiro faz da morte a verdadeira condição do conhecimento dos limites e da destinação da vida humana.

Também é possível dizer que a morte, no primeiro sermão, é a base afetiva da consciência do cristão, sempre movida pelo temor; no segundo, a morte é um objeto de terror que precisa ser domesticado pelas práticas cristãs; no terceiro, é o objeto de desejo que anula todos os outros desejos, desenganados ao longo da existência. Ou seja, em resumo, os pontos fortes dos Sermões de Cinza vieirianos são o agravo da responsabilidade dos atos humanos; o encarecimento da organização pia e eclesial que os pode favorecer e, enfim, a superação da morte pelo ato voluntário de mortificação.

Especificamente em relação à tópica fundamental do “medo da morte”, o primeiro sermão de Cinza a aplica, de modo inverso, como “temor da eternidade” ou da possibilidade de danação além da morte; o segundo reforça-a como medo inalienável de um momento incerto, único e definitivo; o terceiro, enfim, reverte ou recua o medo da morte para o temor das misérias da vida e dos vivos.

Assim como os sermões de Cinza nada especulam sobre o Ser de Deus, tampouco cuidam dos transportes místicos presentes na morte, tão glosados no lirismo religioso ibérico. Vieira apenas presta atenção às “cegueiras da terra”, à vida imperfeita que é dada ao homem viver, não à vida plena em outro mundo. Também é preciso observar que todos os sermões são catolicamente ortodoxos, sendo a morte um item no interior de uma “economia de salvação” que o sacerdote põe ao alcance dos fiéis, tanto para estreitar a ligação entre eles como para fortalecer o grêmio da Igreja.

Por outro lado, é possível observar uma mudança no aspecto dominante da argumentação produzida em cada sermão. A noção de morte gerada no primeiro sermão centra-se nas categorias relativas ao reforço da consciência e do arbítrio; no segundo, introduz uma pastoral cerimoniosa para lidar com a sua brutalidade indomável; no último, sugere certo enfraquecimento do arbítrio, pela experiência de sucessivos enganos, em favor da conquista de um estado de indiferença, fundado na disciplina da vontade.

Enfim, talvez os sermões já não nos sirvam como lição espiritual, mas seguramente servem como experiência objetiva da forma literária. É muito mais questão de ler do que de crer.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho