Piadas que pensam

Plínio Marcos teve cabeça e estômago para revelar algumas das raízes mais repulsivas do Brasil profundo
Ilustração: Thiago Lucas
01/05/2022

Piadas que exigem que se pense para achar graça, em geral, são apenas piadas sem graça. As piadas que Plínio Marcos contava não eram assim: ele as deixava escapar como se fossem a coisa mais natural do mundo, e quase sempre arrancavam gargalhadas imediatas. E, no entanto, passada a corrente irresistível de riso, quem ainda tivesse fôlego, podia desconfiar que talvez não tivesse entendido toda a extensão delas. Talvez até desconfiasse que that joke was on me, como no célebre refrão.

Uma das piadas que Plínio contava repetidamente era a de que a sua obra continuava atual porque o Brasil não mudava. Se pensarmos no Brasil de hoje, com o retorno de um governo quase inteiramente militar e com ideias toscamente regressivas, a piada é mais do que verossímil. Aliás, considerando a boçalidade reinante no Brasil atual, pode-se mesmo dizer que, se o país mudou, foi para pior — o que Plínio também não deixou de prognosticar com todas as letras em dois sketches políticos hilariantes, Leitura capilar e No que vai dar isso, ambos jamais montados.

Surpreendentemente esses dois sketches centravam-se na figura histriônica e fascistoide de Enéas Carneiro, que havia sido o terceiro colocado da eleição presidencial de 1994, à frente de políticos tradicionais importantes como Orestes Quércia e Ulisses Guimarães. Hoje está bem mais fácil ver o que só Plínio Marcos viu naquele momento: o resultado era mais do que uma zebra ocasional ou um voto cacareco, entre anárquico e gozador. O que se apresentava ali ao Brasil da Nova República era o vírus da violência ressentida e preconceituosa que penetrava todas as classes sociais, cujo contágio fora amplificado pela ditadura militar. Ou seja, agora que vivemos a catástrofe eleitoral de 2018, está bem claro que aquela eleição de 1994 já significou um primeiro lampejo tenebroso da Era Bozo.

Por essa e por outras razões, fica cada vez mais claro por que a obra teatral de Plínio Marcos é chave em termos de compreensão do Brasil profundo: ninguém mais, como ele, teve cabeça e estômago para revelar algumas das suas raízes mais repulsivas. Mas atenção: conquanto fosse um praticante declarado do tarô, a revelação que nos propiciou tem menos a ver com vidência esotérica do que com a junção aguda de sensibilidade política e de domínio técnico que o artista tinha do seu ofício. Pois o poder de um artista excepcional não é o de ser profeta, herói ou o de comportar-se como um ser humano exemplar, mas o de ter habilidade para dar forma objetiva a suas inquietações mais difíceis de partilhar, justamente porque ainda não há linguagem para elas. Insisto em que esse ponto do domínio técnico não está bastante esclarecido em relação à dramaturgia de Plínio, muitas vezes tomada como fruto espontâneo de sua “autenticidade” ou de seu talento “natural”. Sem desdenhar de ambos, é fundamental perceber que Plínio se inicia muito jovem ainda no ofício de dramaturgo, como artista e palhaço de circo, atividade profissional que o preparou, mais que nenhuma outra, para representar e debater as misérias do Brasil.

Falei antes na atenção excepcional que ele deu ao caso do candidato Enéas, mas há muitas outras situações tratadas em suas peças que apenas agora se percebe o quanto diziam respeito a fenômenos históricos centrais na formação do país. É o caso do seu interesse pelo lumpesinato — catadores de papel, noias, chapas, batedores de carteiras, desempregados crônicos etc. —, que não é tratado por ele como fenômeno marginal, mas como efeito lógico do desarranjo socioeconômico do país, tão longe da livre competição como do trabalho organizado. Para Plínio Marcos, o que havia — e isso agora está manifesto para quem quiser ver nas ruas de qualquer grande cidade — era um processo de exclusão estrutural no cerne da urbanização e da industrialização brasileira. O que parecia visão periférica de Plínio ou uma descrição restrita a guetos — o que o levou mesmo a ser acusado de olhar apenas para o pior lado da cidade — agora está claro que ocupa o núcleo de um capitalismo autoritário, predatório e desigual.

Voltando ao tema da piada que pensa: outra dessas que Plínio Marcos costumava contar era a de que apenas criava personagens que ele próprio fosse capaz de interpretar. Com isso, produzia uma dupla redução: tanto de seu talento como ator como da complexidade psicológica de suas personagens. Era um recurso de autoironia, como é fácil notar, mas também de ironia diante das perguntas usuais sobre a violência de suas peças. Além disso, se puxarmos o fio implícito na ideia de “redução” não para a ironia, mas para a sua dramaturgia, a piada pode acentuar um ponto fulcral de sua criação: a economia de recursos. Poucos atores, cenografia mínima, objetos ordinários com função transitiva, pouco tempo de duração das peças etc. — tudo isso favorece a reductio ad essentiam do teatro de Plínio. Sem essa redução, dificilmente seria possível sustentar a intensidade que ele alcança, das aberturas in medias res aos finais explosivos.

Já no tocante à qualidade de Plínio Marcos como ator, vale lembrar que, em suas peças, o protagonismo cabe mesmo a personagens com traços de clown, cuja função, associada ao humorismo, é articular o realismo das peças a certo elemento metateatral, de comentário corrosivo sobre o próprio lugar dos espectadores na representação das catástrofes a que aparentemente apenas assistem, comovidos e solidários. Todos os palhaços que ele convoca para atuar evidenciam o mesmo: que a plateia deve vir para o centro do palco — e, no caso de Plínio, ocupar o centro é sempre estar na berlinda.

É verdade que esse aspecto autoirônico e metateatral, muito claro nas peças de Plínio, jamais foi destacado pela crítica. Até certo ponto é compreensível, pois elas trouxeram para o palco uma brutalidade inédita nos palcos brasileiros, e nada pareceu mais visível do que a violência física e vocabular. Certamente, nada provocou mais escândalo. Daí até a hiperdeterminação de um Plínio “maldito”, ou “marginal”, foi um pulo. A meu ver, um pulo de mau jeito, pois o seu teatro nunca quis se ocupar de nichos, mas sim do que afetava o núcleo da organização social do país.

Peças como Navalha na carne, Dois perdidos numa noite suja, Barrela, Abajur lilás, Querô, Quando as máquinas param, Jornada de um imbecil até o entendimento, Oração para um pé de chinelo, Homens de papel etc. produzem duas viradas históricas na dramaturgia brasileira: uma, na visada idealista do proletariado mantida pelo teatro militante de esquerda; outra, no viés conservador de um teatro de repertório que supunha possível conciliar, com arte e benignidade, as contradições sociais do país.

Em suma, ao abrir a cena para o calão, a gíria, o despojamento cru, o riso ofensivo e absurdo, Plínio Marcos criou um teatro contemporâneo vigorosamente pensante, ainda enraizado no texto, mas livre tanto de uma concepção normativa de língua e de cultura, como de uma totalização benigna do caráter “brasileiro”.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho