O sketch político de Plínio Marcos

A frontalidade desses textos servia para caracterizar a censura como absolutamente boçal, a ponto de tornar vã qualquer tentativa de conversa fora da zombaria
Ilustração: Denise Gonçalves
02/11/2020

Gostaria de chamar a atenção, na minha recente edição do teatro de Plínio Marcos (Obras teatrais, Funarte, 2017, 6 vol.), para um conjunto de cinco textos curtos, compostos de cena única e forma farsesca, a repassar acontecimentos e contingências da vida política brasileira. São eles: Verde que te quero verde, de 1968; Ai, que saudade da saúva, de 1978; No que vai dar isso, de 1994; Leitura capilar, de 1995, e, enfim, Índio não quer apito ou nhe-nhe-nhém, do mesmo ano.

Existem neles dois eixos temáticos básicos: as peças mais antigas tratam da corrupção e idiotia da ditadura militar; as mais tardias, dos impasses da redemocratização brasileira expostos nas fragilidades pessoais e políticas dos candidatos à eleição presidencial de 1994. Osvaldo Mendes, biógrafo de Plínio, chamou a essa forma de “estilo esquete-piada”, retomando tanto o que escrevera o crítico Sábato Magaldi, que referia Verde que te quero verde como um “sketch” capaz de provocar “ininterruptas gargalhadas”, como o crítico Yan Michalski, que entendia a peça como uma “pequena charge”, cujo humor “grosso e primitivo” continha uma carga de “devastadora violência”.

Vale a pena tentar entender melhor esse “estilo”, ao mesmo tempo, casca grossa e hilariante, que Plínio praticou tanto no período histórico da resistência teatral à ditadura militar, como no de retomada da vida democrática. Piada suja e desgraça política conjugam-se em quadros rápidos, elaborados com humor agudo e sarcástico, nos quais figuras caricatas vendem sem pudor o país, ou então julgam-se naturalmente em posse dele, numa concepção distorcida do sentido do governo ou do voto: patrimonialista por um lado, como se o governante dispusesse do bem público como propriedade particular; frívola e exibicionista, por outro, como se o cargo fosse prêmio e aplauso e não obrigação e trabalho.

Esse tipo de texto breve, destrambelhadamente engraçado, sem compromisso com a verossimilhança, está certamente na tradição da farsa, mas penso que seria interessante considerar a adaptação que sofreu dentro do chamado “teatro de revista”, um subgênero teatral com muito sucesso no país, o qual, nos termos de Vera Colaço, “tinha o objetivo de oferecer uma re-visão (re-vista) resumida dos conteúdos e acontecimentos do ano anterior, sob um viés crítico e cômico: uma resenha anual irônica, engraçada e bem elaborada”.

Desse tipo de composição, que tira partido de uma linguagem alusiva e de uma sucessão de fechos grandiosos (“apoteoses”), Plínio Marcos tende, entretanto, a cortar todo o exuberante e rebarbativo. A “revista” é, por assim dizer, transportada para o picadeiro de um circo mambembe, onde as alusões e maledicências dão lugar ao desacato frontal, à palhaçada crua, e ainda a uma visão crítica e hostil ao ambiente político oficial do país — que o teatro de revista, na sua época, ainda que de modo picante, não deixava de celebrar.

Para dar uma ideia mais concreta dessa transposição pliniana, consideremos o sketch mais antigo, Verde que te quero verde, no qual a cena se resume a três militares “vestidos de macaco” a proferirem asnices. Como é sabido, a peça é a resposta de Plínio para o convite de Augusto Boal para participar da “1ª Feira Paulista de Opinião”, uma produção do Teatro de Arena que visava levar ao palco obras de autores de esquerda num espetáculo organizado em torno da pergunta: “O que você pensa do Brasil de hoje?”. Além de Plínio, foram convidados os dramaturgos Bráulio Pedroso, Jorge Andrade, Gianfrancesco Guarnieri, Lauro César Muniz e o próprio Boal, contando ainda com o envio de obras por compositores e artistas plásticos, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo, Nelson Leirner, Jô Soares, Antonio H. Amaral, etc.

O título da peça de Plínio foi retirado de um verso célebre de Federico García Lorca que ocorre como uma espécie de bordão em Romance sonámbulo (“Verde que te quiero verde,/ verde viento, verdes ramas”), um dos poemas do Romancero gitano, de 1928. A referência ao poema combina com as posições de Plínio ao menos em dois pontos precisos: a simbologia da cor verde, que Lorca associa a presságios fúnebres trazidos pelos ventos que penetram as ramas e lhes roubam as cores, e, ainda, a ideia da poesia como cigana, livre, em oposição à vida estagnada das cidades e dos centros de poder.

Mas esse é o viés mais sutil do sketch, e não o que é predominante nele, ou seja, o escracho. Aqui, o termo “verde” remetia à cor oliva do uniforme do Exército brasileiro, e as senhas usadas pelos gorilas fardados remetiam a valores caricaturalmente conservadores (como na fórmula “Deus, Pátria e Família”, requentada hoje pela extrema-direita no poder), associando-os à escatologia (“um peido com a boca”) e ao obsceno (“pau” ou “cacete”, que equivocava órgão sexual e instrumento de tortura).

A rigor, nesse sketch, a atividade exclusiva a ocupar os militares ociosos são a censura e a repressão, ambos reunidos na expressão “passando a borracha”, que remetia tanto ao apagamento dos escritos, vale dizer, à destruição das obras artísticas, como às pancadas dadas com o cassetete “no lombo do autor”. A mesma conjunção nefasta aparece na expressão “tática do laço húngaro”, que refere a proibição censória e o enforcamento do agitador.

O escracho com a censura e a boçalidade dos militares evidencia-se também na personagem do “Chefe”, que despede ordens sentado num capacete que “faz as vezes de penico”, confundindo-se o que ele ordena ou fala com as fezes que simultaneamente obra, e que, a certa altura, ameaça atirar na plateia, mantendo-a sob constante alarme. Esse procedimento hilariante, de resto, é análogo às cenas trianguladas dos palhaços de circo, em que a ação entre eles sempre pode também atingir o espectador.

Outro procedimento constante no sketch político pliniano é a auto-ironia. Por exemplo, quando o “Chefe” diz: — “Desde que comecei a censurar peça desse cara, vivo falando palavrão” —, alude-se tanto à censura arbitrária, como à quantidade de palavrões associada ao teatro de Plínio (“passou na porta do teatro e já ficou de boca suja”). Noutro momento, quando as personagens do “Chefe” e do “Subchefe” ouvem a fita gravada pelo espião infiltrado na assembleia dos artistas, há uma dupla piada com o meio teatral, que recai também no próprio Plínio: primeira, a de que todos falam junto nesses encontros, produzindo “uma tremenda bagunça”, onde “não se entende nada”; segunda, a de que, neles, começa-se sempre animado pelas propostas radicais e termina-se oferecendo “um banquete” aos censores, a fim de “ganhar a simpatia” deles.

Naquele momento de polarização política e de repressão policial (que desgraçadamente reencontramos agora), a autocrítica era tão corrosiva como a crítica, pois revelava o temor da classe teatral e ironizava os esforços de cooptação civilizada de tipos destituídos de razão. E, de fato, a frontalidade dos sketches servia também para isso: caracterizar a censura como absolutamente boçal, a ponto de tornar vã qualquer tentativa de conversa fora da zombaria e do escracho.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

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