O labirinto do amanuense (1)

“O amanuense Belmiro” é todo ocupado pelas fantasias diárias em torno de Carmélia e Camila
Ilustração: Igor Oliver
28/06/2019

Um dos romances brasileiros de que mais gosto é O amanuense Belmiro (1937), de Cyro dos Anjos (1906-1994), mineiro de Montes Claros. Tudo no livro é inovador sem parecer sê-lo, a começar pelo deslizamento de gêneros que, em outra ocasião, levou a que o chamasse de “romance reticente”. Retomo, aqui, alguns aspectos que o fazem grande, êmulo em prosa da poesia de Drummond.

Para começar, é preciso considerar que, no romance, há apenas um embrião de história que se estende do carnaval de 1935 ao carnaval do ano seguinte. Belmiro Borba, o único filho homem de uma família de antiga oligarquia mineira, já devidamente arruinada, obtém uma sinecura na burocracia de Belo Horizonte. Na repartição, Belmiro, tal como o Bartleby, de Melville, não faz mais que copiar fórmulas burocráticas e vê-las rodar entre as mesas dos colegas. O mais é tempo livre para aplicar em sonhos acordados e a esboços literários — como num texto conhecido de Drummond, a burocracia é chave para a produção literária brasileira.

Certo dia de carnaval, depois de beber bastante e aspirar jatos de lança-perfume, sente pousar em seu braço a mão de uma foliã, cujo rosto não distingue bem, mas não o impede de sofrer um arrebatamento amoroso. Nos dias seguintes, a imagem vaga da bela dama de mão branca não lhe sai da mente, e isso se agrava quando, ao passar diante de um casarão, ouve uma voz feminina a entoar Torna a Sorriento, o que o arrasta desta vez à lembrança de seu primeiro amor, Camila, ainda nos tempos anteriores a Belo Horizonte, em Vila Caraíbas. O cheiro de um pé de dama-da-noite por perto acentua o transporte amoroso, como antes fizera o éter. Apenas que, agora, o canto remete ao passado, à infância, e daí para fora do tempo, embaralhado pela memória longínqua. E o que pode acontecer em seguida, senão Belmiro descobrir que as donas da mão branca e da voz cristalina são uma só pessoa: Carmélia, uma rica órfã? E, de fato, em matéria de ação, isto é tudo: daí em diante, com os sentidos perturbados pela mulher, Belmiro apenas devaneia e escreve sobre os sentimentos paradoxais que o arrastam cada vez mais para dentro de si mesmo.

A rigor, portanto, O amanuense Belmiro é todo ocupado pelas fantasias diárias em torno de Carmélia e Camila — as duas mulheres, aliás, confundem-se entre si, como indica a proximidade dos nomes —, violentamente amadas pelo amanuense na imaginação. Acrescento que, nesse esboço — rascunho — de história, o romance também não se empenha na construção das personagens. À exceção de Belmiro, são todas deliberadamente esquemáticas: da Camila pura à Carmélia fátua; do Silviano nietzschiano ao Redelvim marxista; das irmãs matusquelas aos burocratas genéricos. Há também uma espécie de economia das ações das personagens típicas, que opera por meio de oposições, sem nenhuma esperança de síntese. Por meio delas, a narrativa se enreda em perplexidades e dilemas insolúveis a ponto de produzir o seu feito mais notável: um deslizamento entre pelo menos três gêneros: o romance, o diário e o livro de memórias ou autobiografia.

A primeira antinomia amplificada por Belmiro em seus devaneios tem por base a “questão católica” apresentada por Silviano, o sujeito mais intelectualizado do grupo de amigos à roda da repartição, a qual propõe que o homem tomado pelo desejo torna-se necessariamente infeliz, pois todo desejo acentua a falta e a impossibilidade de satisfazê-lo. A superação do dilema seria fugir do desejo e renunciar a tudo o que na vida possa ser excitante. Tal como enunciada, a hipótese não é exatamente levada a sério, pois Silviano é quem menos resiste à comichão desejante. Não é surpresa, portanto, que Belmiro não a adote. Quando afinal o desejo é anulado, não é efeito de escolha realmente, mas de uma anulação involuntária do arbítrio na simples estupidez da vida.

Entretanto, Belmiro tampouco se decide pelo seu pólo oposto, representado pela “questão fáustica”, proposta pelo mesmo Silviano. Na versão deste, Fausto é um sábio que tudo sabe, menos o caminho da felicidade, o que o leva a buscá-la não na sabedoria, mas no prazer dos sentidos, por meio de um pacto com o diabo. Quer dizer, a questão fáustica implicaria em que o conhecimento, ao contrário de aproximar o homem da felicidade, efetuaria o seu rompimento com ela. O desejo insatisfeito estaria no cerne do intelectual, e este teria de apelar ao demônio para livrar-se do saber e poder finalmente entregar-se aos sentidos — aquilo mesmo de que se afasta pelo conhecimento.

Entre as duas posições — a que constata o encargo necessariamente infeliz do conhecimento e a que faz da renúncia ao desejo a condição da paz de espírito —, Belmiro não consegue se decidir. Ainda mais porque o dilema tem muito de artificialismo erudito, sendo mais matéria de exibição pública e escapismo letrado do que pensamento consequente sobre a vida. E se o dilema não cola teoricamente, muito menos se ajusta à prática de Belmiro, cujo arbítrio permanece suspenso, sobredeterminado pelo ritmo da burocracia provinciana. Belmiro, aliás, reconhece a inconsistência do dilema, mas usa-o, contudo, como racionalização de um incômodo existencial, que não logra definir nem superar.

Outra oposição notável dá-se em relação a Carmélia, a quem Belmiro oscila entre amar como aparição evocativa ou como mulher que possa tocar, casar ou ter filhos. As circunstâncias nas quais a conheceu, como homem sombrio e solitário, e ainda alterado pela bebida e o éter, em meio a uma multidão tomada pela alegria carnavalesca, favoreciam essa estranha superposição entre a epifania fugaz do presente e o passado maravilhoso da memória infantil. Graças a essa sobreposição, confluíam também as duas mulheres da sua vida: a esnobe e banal Carmélia alçava voo em direção a uma imagem de sonho, enquanto a doce e sublime Camila ajustava seu fantasma a um corpo fresco e violável, composto de cheiros fortes e partes nuas.

O movimento é admiravelmente perverso, pois, ao tornar Carmélia sublime, Belmiro impedia-se de conquistá-la na vida real, e, por outro lado, ao encontrar nela um novo corpo para o sonho, impedia a autossuficiência da imaginação do passado. Ampliando a aporia, pode-se dizer que, se o lirismo devaneador é o que aparentemente distingue Belmiro da vida miúda de burocrata, é esse mesmo lirismo que o entrega, sem saída, à inexorável dispersão maquinal no quotidiano anódino do escritório.

Finalmente, como sugeri no início deste texto, essas oscilações irresolvidas, esse “labirinto de antinomias” do narrador-personagem, acabam contaminando exemplarmente o próprio gênero de escrita adotado por Belmiro, que nunca chega a se definir completamente, como tampouco se define a natureza reticente desse romance que se dá a ler como suposta recolha dos textos do amanuense. Se calhar, voltarei a essa questão numa próxima coluna, pois ela está longe de trivial na literatura brasileira.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho