O heroísmo impossível da marginalidade

A peça começa ex abrupto com a entrada de Bereco, um fugitivo da polícia, no barraco onde dormem Rato, um bêbado tuberculoso, e Dilma, prostituta decadente
Ilustração: Aline Daka.
30/08/2018

Enquanto preparava a edição das Obras teatrais, de Plínio Marcos, cujas linhas gerais apresentei na edição de abril deste Rascunho, tive acesso a versões e documentos que me alertaram para a relevância de certas peças do repertório de Plínio, nem sempre as mais conhecidas. Na ocasião, uma das que mais me impressionaram foi Oração para um pé de chinelo, de 1969, ano em que Plínio Marcos era o autor teatral mais proibido do Brasil.

A peça começa ex abrupto com a entrada de Bereco, um fugitivo da polícia, no barraco onde dormem Rato, um bêbado tuberculoso, e Dilma, prostituta decadente. Essa irrupção imprevista leva Rato a acordar assustado e automaticamente a proclamar-se inocente sem haver qualquer acusação contra ele, o que evidencia o costume de se ver submetido a interrogatório policial. Quando percebe que o seu barraco havia sido invadido por um marginal e não pela polícia, a sua reação é de alívio, o que também dá um matiz cômico para a cena brusca.

O alívio, entretanto, não se traduz por qualquer camaradagem entre eles, ao contrário: a desqualificação mútua e o rebaixamento do outro constituem o sistema de comunicação entre as personagens trancafiadas juntas no cômodo exíguo, que lembra em tudo a situação incômoda e violenta de uma cela. A exasperação é acentuada por um gesto repetitivo e repetido em cena: o vasculhar nervoso de Rato entre as garrafas vazias em busca de alguma que ainda contenha um resto de bebida. O vazio reiterado delas amplifica as agressões mútuas, assim como confirma os sintomas da degradação física, social e moral em que se encontram: Rato está “chué da cuca, dos peitos, escarrando sangue e tudo”; Dilma “fede”, dá “dó” e “nojo”, espalha “chato”; Bereco tem “pinta de pé de chinelo”, que “não leva jeito de ser de nada”, o que, dentro da lógica torta em jogo, implica em falta de autoridade até como marginal.

Contra a sua sina de “pé de chinelo”, Bereco garante estar com muito dinheiro, e Rato confirma a periculosidade dele por seu nome constar de uma lista de execução da força policial, a qual já agora revela seu caráter igualmente marginal: trata-se não da força do Estado a serviço da Justiça, mas de um grupo de extermínio a serviço de particulares, talvez por conta de assaltos cometidos por Bereco.

Ainda assim, a grandeza ou heroísmo do marginal é inverossímil: ele não tem para onde correr e precisa desesperadamente de um esconderijo que o salve. A bem considerar a situação dos três, Bereco é mesmo o que apresenta maior fraqueza e temor, numa situação de verdadeiro cerco. Dilma não sente medo porque não tem esperança, e Rato tem apenas a urgência momentânea da bebida, sem qualquer expectativa de futuro, sabendo ambos que o tempo está perdido desde o nascimento na miséria.

Ao impedir Dilma de sair do barraco, por desconfiança de que ela aponte seu paradeiro aos policiais que o procuravam, Bereco evidencia também a trama paranoica que flagela as três personagens. A discussão que travam para saber quem seria mais confiável para sair e buscar comida e bebida só amplifica as suspeitas que alimentam entre si, especialmente quando se explicita a atuação de Rato como informante da polícia. As ameaças de Bereco, bem como a sua promessa de recompensas cada vez maiores a quem o ajudar, expandem a suspeita até o paradoxo, pois a venalidade que excita não pode garantir a confiança que ela mesma testemunha não existir.

Há outro paradoxo em cena. Fugindo dos policiais matadores, Bereco se dirigira justamente para o barraco de um alcagueta da polícia, movido por um plano borrado pelo desespero: quer comprar o Rato para que negocie a sua rendição, pois supõe que a condição dele como informante lhe daria alguma credencial junto aos policiais. A hipótese se revela delirada desde o início, seja pelo estado de miséria do Rato, seja pela menção especular que este faz à apavorante história do “Cheirinho”, informante fuzilado pela polícia justamente por dar “cobertura” a um marginal.

Nessa ciranda de medo, suspeita e, ao mesmo tempo, carência e necessidade de confiar, Dilma aparenta ter alguma vantagem em relação aos outros, simplesmente porque parece indiferente a qualquer fim, o dela ou o dos demais. Cética sobre qualquer saída, ela tanto estimula a desconfiança de Bereco em relação ao Rato, como incentiva o fugitivo a enfrentar os policiais e, ao contrário de se esconder, buscar cumprir o seu destino como bandido, no âmbito do mal: “É assim que tem de ser. Foi ruim. Morre ruim. Nada de dar moleza”. As suspeitas apenas podem ser sustadas com a liquidação da esperança e a aceitação do mal que lhe coube fazer na vida.

Essa escolha deliberada da vida que não se pode escolher não implica em ter chance de sobreviver, nesta ou em outra vida, mas sim numa espécie de ganho moral da morte. A pacificação do estado frenético de desconfiança e loucura só é possível pelo gesto livre de morrer descontando “as sacanagens que sempre fizeram pra nós”. Miserável, seu único verdadeiro dever é “fazer miséria”. Ou seja, para Dilma, a única vingança possível é a da aceitação decidida de uma condição criminosa. Nos termos de uma existência sem valor, a conquista da liberdade residiria exclusivamente em fazer o mal, renunciando a todo amor à vida, própria ou alheia.

O niilismo de Dilma parece introduzir algum valor moral na existência, conquanto igualmente a declare impossível de ser vivida. Não é surpresa, portanto, mas fruto da mais perfeita lógica — por mais que seja sentida pelo público como surpreendente, pois é inevitável apiedar-se dos miseráveis e não levar a sério a sua capacidade de fazer mal —, ser Dilma a trair a confiança de Bereco e denunciá-lo, depois de ficar com o seu dinheiro. Esta é uma hipótese plausível, embora mantida sabiamente irresolvida na peça, sem que se conheça a exata medida da traição.

Ao final, quando a luz se apaga, como Plínio fez questão de explicitar na rubrica da peça, o seu foco deve estar sobre o rosto de Bereco, mostrando-o com uma “expressão torturada”, o que significa que foi consumada a morte previsível, mas também que não há qualquer redenção à vista. O “bom negócio” da morte quando a “vida é uma merda”, postulado por Dilma, é apenas outra face vazia da loucura. A afirmação de si (“eu sou mais eu”) pelo instrumento da força, no qual o revólver é o grande “trunfo”, não muda nada, pois o destino é cumprido, afinal, fora da vontade individual: “as coisas acontecem sem a gente poder miar”.

Assim, na peça de Plínio, o crime é efetuado não como transfiguração da condição ou do valor moral do “pé de chinelo”, mas apenas como continuidade da insignificância da vida. Não há concessão alguma ao patetismo romântico, ao idealismo vitimista ou ao marginalismo heroico. No vocabulário final da peça, até o niilismo postulado por Dilma é ainda uma ilusão de grandeza na morte. O que resta, de verdade, é o varejo da violência e da dor, cuja origem os que a sofrem sequer a podem sonhar.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

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