Livros da virada

O italiano Andrea Camilleri era desses homens talhados para trabalhar eternamente
Ilustração: Dê Almeida
26/02/2020

Ano-novo, pensei em dar um tempo ao Dr. Clegg e suas instruções para sobreviver à guerra [How to keep well in Wartime, 1943], que tenho tentado traduzir e adaptar para o Brasil atual. Não porque sejam menos necessárias. Pelo contrário, ainda mais agora que a guerra ameaça se alastrar para todo o mundo, a praticidade do Dr. Clegg parece utilíssima. Se não para mudar o estado de coisas beligerante e catastrofista, ao menos para resistir à histeria e preservar alguma racionalidade.

Dar um descanso ao Dr. Clegg significa também atender às advertências que ele nos faz, a começar pela ideia fundamental de que os tempos ruins se enfrentam com a manutenção de nossos hábitos. Pessoalmente, não tenho nenhum hábito mais constante e prazeroso do que o da leitura, e, assim, nesta primeira coluna do ano, pensei em dar aqui uma notícia simples dos livros que me acompanharam neste último mês do ano, excluídos aqueles que li profissionalmente.

Todos eles — meio por acaso, meio por conta do padrão de editoração que torna os livros sempre fáceis de carregar e de manusear em viagem — foram publicados pela editora palermitana Selleri, fundada pelo casal Elvira (morta em 2010) e Enzo Sellerio, ainda à frente da casa. Em 2019, a editora completou 50 anos, o que não é pouca coisa em se tratando de uma empresa familiar, com sede fora dos grandes centros econômicos. Cheguei a ela, anos atrás, através das narrativas policiais de Andrea Camilleri, protagonizadas por Salvo Montalbano, o sanguíneo inspetor de polícia da fictícia Vigàta, inspirada no vilarejo siciliano onde nasceu o autor, morto em julho de 2019.

Camilleri era desses homens talhados para trabalhar eternamente, como Clint Eastwood, e a notícia de sua morte em julho foi um tremendo golpe para os seus leitores fiéis, entre os quais me incluo, ainda que ele estivesse com 94 anos e, já cego, há tempos apenas ditasse os seus livros. Mas continuava a se apresentar no circuito teatral com monólogos indignados com a anomia da Itália contemporânea, que tarda em se insurgir contra as baixezas neofascistas, cujo símbolo maior são os decretos de segurança nacional do ex-ministro do Interior Matteo Salvini que proíbem ajuda aos barcos de refugiados à deriva nas costas da Itália meridional. Vários dos casos de Montalbano têm como parte do plot a matéria dos refugiados, cujos corpos, de forma cada vez mais normalizada, vêm sendo colhidos, junto com os peixes, nas redes dos pescadores da região.

Do Inspetor Montalbano, nesta virada de ano, li apenas o que me restou para ler: Il cuoco dell’Alcyon [O cozinheiro do Alcyon], que originariamente era um roteiro que Camilleri havia escrito há uma década para uma produção ítalo-americana que acabou não sendo levada a termo. Assim, resolveu lhe dar a forma de um romance — com algumas diferenças sutis, que não escapam aos seus leitores devotados: conquanto mantenham-se os costumeiros 18 capítulos, estes não têm o tamanho absolutamente regular das demais aventuras (correspondente a dez páginas do computador de Camilleri).

A história também não acompanha cronologicamente a idade ou a situação de Montalbano tal como vinha sendo conduzida até a sua aventura anterior, Il metodo Catalanotti [O método Catalanotti], em que já estava bem mais velho, e com a relação afetiva com a sua eterna namorada, Livia, muito mais conturbada. No entanto, a grande curiosidade deste livro — em parte, explicada pela sua origem — é a colaboração de Montalbano com um agente do FBI, a despeito de seu notório desgosto diante da americanização da vida que, aos poucos, vai afetando até a sua pequena Vigàta.

Ainda de Camilleri, para matar as saudades que já me atingem em cheio, li mais dois livros. O primeiro, Le vichinge volanti e altre storie d’amore a Vigàta [As vickings voadoras e outras histórias de amor em Vigàta], de 2015, são uma reunião de oito contos divertidíssimos ambientados na mesma cidadezinha de Montalbano, mas sem a presença dele. O segundo, Autodifesa di Caino [Autodefesa de Caim] é um monólogo a propósito da natureza do mal que ele escreveu em sequência a Conversazione su Tiresia [Conversa sobre Tirésias], de 2018, com o qual se apresentou com sucesso nos palcos italianos. Camilleri pretendia estrear o novo texto no dia 15 de julho de 2019, nas Termas de Caracala, em Roma. Entretanto, não o pôde fazer: encontrava-se bastante doente, vindo a falecer dois dias depois. De modo que este é o seu primeiro livro póstumo, cuja forma final teve a colaboração de sua neta, Arianna Mortelliti.

Saindo de Camilleri, mas não da Sellerio, li mais duas coleções de narrativas. A primeira foi Pezzi da museo [Pedaços/peças de museu], que é a tradução italiana do original inglês Treasure Palaces. Great writers visit Great Museums, organizado por Maggie Ferguson, em 2016, para a Intelligent Life, a revista cultural do The Economist, que atualmente se chama 1843 Magazine. A recolha é irregular, mas a ideia é interessante: 22 escritores, mais ou menos conhecidos, falam sobre museus, acervos ou mostras que foram marcantes para eles.

Estão representados, entre outros, o Museu da Gente Comum, no Lower East Side Tenement Museum, de Nova York; o Museo dell’Opficio delle Pietre Dure, em Florença; a Villa San Michele, em Capri; o Musée de la Poupée, em Paris; o Dove Cottage, em Grasmere (UK); o Museu das Relações Rompidas, em Zagreb; o Museu do ABBA, em Estocolmo etc. Entre os escritores, nomes como Roddy Doyle, William Boyd, Claire Messud, Ali Smith, Jacqueline Wilson, Julian Barnes, Ann Wroe, Matthew Sweet etc.

De todos os relatos, porém, para mim, o mais impressionante é o de Rory Stewart sobre o Museu Nacional do Afeganistão, em Cabul. Não apenas pelo fato de a simples existência do museu já ser um milagre, atacado como foi por vários lados dos inúmeros conflitos da região, como pelo fato de que o seu segundo andar hospeda peças oriundas do importantíssimo sítio arqueológico de Mes Aynack, a 40 quilômetros ao sul de Cabul, onde foram encontradas as primeiras representações humanas de Buda. O sítio está atualmente ameaçado — não pelo Taleban, ou qualquer grupo terrorista — mas pela própria comunidade internacional, tendo à frente o governo chinês, que pretende dinamitar o sítio para extração de cobre, com o beneplácito dos demais países, o que só comprova o estado reiterado de boçalidade mundial.

O outro livro de contos que li é um original da própria Sellerio e foi lançado em comemoração aos 50 anos da editora. Trata-se de Cinquanta in blu [Cinquenta em azul — a cor se explica, entre outras possibilidades, por ser habitualmente usada nas sobrecapas da editora], no qual o seu time de escritores, vários deles especializados em policiais, foi convocado para escrever uma trama em que tivesse parte algum livro editado anteriormente pela Sellerio. A coleção é apenas razoável: particularmente ruim achei o conto de Uwe Timm, que retoma Antonio Tabucchi, mas de Lisboa e dos portugueses não conhece senão imagens estereotipadas, mas os contos de Antonio Manzini, a propósito de um livro de Massimo Bontempelli, e de Giosuè Calaciura, que retoma Leonardo Sciascia, são bem interessantes. Auguri!

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho