Contra os cultos (1)

Quando padre António Vieira recomenda que a oratória sacra seja praticada como uma “arte sem arte”, não há, nessa fórmula, nenhuma recusa absoluta do ornato dialético
Ilustração: Matheus Vigliar
01/06/2021

O Sermão da sexagésima, do padre António Vieira (1608-1697), pregado em 1655, na Capela Real de Lisboa, é o mais celebrado e estudado dos mais de 200 sermões impressos do jesuíta. Não é difícil encontrar razões para isso, pois, nele, Vieira parece exceder a si mesmo, pregando e simultaneamente comentando a pregação que faz. Como resultado, produz uma espécie de meta-sermão que sintetiza as linhas principais da “nova arte de pregar” que o padre julgava ter concebido, com base em diferentes modelos de pregação, mas ajustando-os de uma maneira que lhe parecia outra, “nova”.

Em diferentes textos e ocasiões, participei de aulas ou discussões sobre aspectos notáveis do Sermão da sexagésima, como a questão do “conceito predicável” (Semen est verbum Dei, extraído do Evangelho de Lucas); a da analogia in factis entre a parábola do semeador, a pregação jesuíta e a ação de Vieira no Maranhão; a questão do artifício da “ponderação misteriosa” que organiza todo o sermão, conduzido pelo aparente paradoxo entre o poder absoluto da palavra divina e a ineficácia atual dos sermões; a questão dos três concursos necessários (“Graça”, “entendimento” e “doutrina”) para eficácia do sermão, que sobretudo carrega sobre o pregador a culpa do insucesso dele; a das “cinco circunstâncias do pregador” (“pessoa”, “ciência”, “matéria”, “estilo”, “voz”); a analogia entre as árvores do sermão e da vida; a questão da oposição entre o ofício de pregador e o gosto do ouvinte, etc.

De todas essas questões da Sexagésima que mencionei, com avanços importantes trazidos por vários pesquisadores de diferentes lugares do mundo, a que me parece mais resistente ao debate, ou, de outra forma, a mais apegada aos lugares comuns estabelecidos ao longo da fortuna crítica do padre Vieira, é aquela a respeito da crítica feita por ele ao “estilo culto” dos pregadores de sua época. Exatamente por isso, gostaria de destacá-la aqui, buscando elucidar ao menos alguns dos seus sentidos básicos.

A questão a desvendar, portanto, seria: como entender a célebre censura que Vieira produz, no Sermão da sexagésima, ao emprego do estilo culto dos pregadores? É sabido que a carapuça da censura foi vestida especialmente (mas não apenas) pelos dominicanos, adversários da Companhia de Jesus na Corte de D. João IV, entre outros aspectos, por terem hegemonia sobre a Inquisição portuguesa.

Não poucos autores, no Brasil e em Portugal, interpretaram tal censura numa chave que poderíamos chamar de “pré-iluminista”, já que, nela, o padre Vieira como que anteciparia o gosto por um estilo mais “simples” e dotado de mais “bom-senso” ou “juízo” — ou seja, justamente aquele gosto que predominaria no século seguinte, graças à influência da ilustração francesa. A censura, nesse caso, teria um sentido próximo do exposto pelos árcades ou neoclassicistas setecentistas que, ao comentar a produção dos autores do período imediatamente anterior, achavam-lhes sobretudo exageros, fantasias e inverossimilhanças. O nome “barroco”, derivado do vocabulário das pedras preciosas de forma defeituosa e de pouco valor, pretendia justamente declarar pejorativamente o mau feitio original do estilo.

Além disso, por vezes de maneira combinada com a crítica anterior, certos autores viram na censura feita pelo padre Vieira aos estilos cultos, sobretudo a defesa de um estilo mais “sincero”, mais “espontâneo” ou “natural”, ou seja, menos obediente à retórica “engenhosa”, extravagante e artificial que julgavam predominar no “estilo culto”. Vale dizer, dessa maneira, entendiam a censura vieiriana em chave “pré-romântica”, igualmente antecipadora de um gosto que apenas seria predominante, em Portugal, nos inícios do século 19 — muito tempo depois, portanto, da morte do padre António Vieira, no final do 17.

Vale notar que, ambas as interpretações, em princípio, pretendem ser favoráveis à fala de padre António Vieira: dar-lhe crédito por sua antevisão de um futuro que julgavam melhor resolvido tanto em termos de civilização, como de estilo. No entanto, esse mesmo parti-pris também costuma levar, rapidamente, a uma verdadeira peripécia nos comentários. Pois tão logo os críticos que fazem esse tipo de observação pretensamente elogiosa se apercebem de que essa leitura pré-romântica da censura é desmentida pelo próprio estilo do padre Vieira — sempre engenhosíssimo e disposto a tudo, menos a perder a chance de desempenhar com valentia um conceito agudo —, são obrigados a recuar e a acusar Vieira de não ter seguido de maneira coerente os conselhos excelentes que ele próprio dava, deixando-se muitas vezes arrastar pelo gosto estragado de seu tempo, ou seja, entregando-se, também ele, aos jogos “asiáticos” dos ornatos que se encontram em tantos de seus sermões.

Ao estudar o caso, adianto, desde logo, que não penso que Vieira critique a ornamentação discursiva enquanto procedimento retórico inadequado a priori. Em primeiro lugar, porque figuras e ornatos são recursos próprios da oratória e conhecê-los é parte do domínio dos meios disponíveis para atender aos seus fins. Isto significa que um orador profissional, como Vieira, não poderia considerá-los um mal senão quando seus usos e efeitos particulares resultassem mal — por exemplo, quando fossem empregados de maneira inadequada ao “decoro” do gênero da oratória sacra. A meu ver, é justamente como crítica da ruptura do decoro que deve ser interpretada a fala de Vieira de que os pregadores da corte andavam trocando o púlpito em comédia, pondo a perder a gravidade que lhe seria própria:

Uma das felicidades que se contava entre as do tempo presente, era acabarem-se as comédias em Portugal, mas não foi assim. Não se acabaram, mudaram-se, passaram-se do teatro ao púlpito. Não cuideis que encareço em chamar comédias a muitas pregações das que hoje se usam. Tomara ter aqui as comédias de Plauto, de Terêncio, de Sêneca, e veríeis se não acháveis nelas muitos desenganos da vida e vaidade do mundo, muitos pontos de doutrina moral, muito mais verdadeiros e muito mais sólidos do que hoje se ouvem nos púlpitos. (Sermões, I, p. 33. Porto, Lello & Irmão, 1959.)

A rigor, tais palavras não pretendem negar a arte do sermão, nem censurar qualquer sermão por ser efeito da arte que lhe é própria. Ao contrário, o ataque aos “estilos modernos” está perfeitamente assentado na arte retórica, especialmente quando pensada na sua articulação católica com a teologia. Quando Vieira recomenda que a oratória sacra seja praticada como uma “arte sem arte”, não há, nessa fórmula, nenhuma recusa absoluta do ornato dialético, vale dizer, do conceito engenhoso, como procedimento técnico adequado. Trata-se precisamente de acentuar um ponto importante do decoro específico da parenética, isto é, o da conveniência de pessoa, lugar e tempo prevista no gênero da oratória sacra. Nesta, a composição da investidura grave ou solene é parte decisiva da produção dos argumentos éticos, fundamentais para que o sermão obtenha eficácia junto ao ouvinte cristão.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho