Categorias poéticas alternativas à ideia de barroco (2)

Para um autor do início do período moderno, tudo o que pode ser encontrado pelo intelecto finito do homem foi antes disposto por Deus
Ilustração: Taise Dourado
01/03/2021

Na coluna anterior expus brevemente a relevância da categoria da “agudeza” ou “argúcia” para uma compreensão historicamente mais adequada das obras do período usualmente chamado de “barroco”, conceito que não se aplicava então. Gostaria agora de continuar o esboço, relembrando que, seja qual for o tipo de agudeza, o seu núcleo é sempre o estabelecimento de uma relação surpreendente entre objetos distantes. A distância, no caso, implica que os conceitos, palavras ou atos relacionados não guardem entre si qualquer associação semântica muito conhecida ou facilmente previsível.

Trata-se, portanto, de produzir nexos semânticos que não estejam logicamente predeterminados. No limite, a sutileza que se pode chamar realmente de “aguda” opera associações e imagens “incongruentes” face ao entendimento corrente e amplamente partilhado; de fato, é o princípio de incongruência que atribui valor máximo ao ato intelectual de descoberta de um ente ou atributo que até então parecia inexistente.

O esclarecimento do que ficou dito acima obriga a um brevíssimo excurso teológico que permitirá situar melhor a extensão da “descoberta” prevista na doutrina da agudeza. Na perspectiva de um mundo burguês, democrático, laico, não se atribui fundamento teológico à existência ou aos seus entes. Quando um autor estabelece relações significativas, únicas e inesperadas, diz-se que ele as “inventou”, no sentido forte de que é o seu criador original. Criação e originalidade funcionam, por assim dizer, como mútua garantia.

Não é assim, entretanto, para um autor do início do período moderno: para ele, por definição, nada que é objeto de criação humana tem o estatuto de “criação ex nihilo”, selo exclusivo de Deus. A descoberta de uma relação significativa inusitada é sempre, em alguma medida, a “revelação” ou a “manifestação” de um sentido que apenas existe em estrita dependência da criação divina que a tudo antecede. Ou seja, tudo o que pode ser encontrado pelo intelecto finito do homem foi antes disposto por Deus, e apenas existe como efeito — ou como “participação” — dessa criação divina original. De resto, o homem, ele próprio, é “criatura”, isto é, efeito da criação divina.

Segue-se necessariamente que a descoberta de uma relação profunda ou oculta, por meio do engenho humano, refere não uma invenção original, como a criação artística é pensada hoje, mas sim o desvelamento de algo de que a natureza já estava impregnada a partir do ato inaugural de criação divina. No máximo, é possível dizer que o artista engenhoso, ao criar um nexo inesperado, é um “co-partícipe” da Providência, agora efetuada na história humana, embora previamente concebida por Deus: o poeta é coautor de uma criação que lhe é anterior. Na mente de Deus, por assim dizer, todos os dados já foram jogados, todas as formas já foram inventadas.

Isto dito, já é possível considerar uma segunda peça pertinente no jogo estilístico do “barroco”. Trata-se da categoria “artifício”.

Dois alertas: 1) a separação de cada uma dessas peças é apenas uma operação teórica, pois na performance do poeta, operam todas juntas; 2) embora o termo “artifício” soe mal para a sensibilidade burguesa, ele é absolutamente adequado nos termos das preceptivas dos séculos 16 e 17. Quando elas consideram a obra de arte como “artificiosa”, não referem as noções de “falso”, “sem valor”, “frívolo” ou “incorreto” — vale dizer: o seu emprego histórico não carrega a conotação pejorativa do presente. “Artifício” é apenas o nome do que existe como efeito de “arte”, isto é, um domínio técnico, com doutrinas e regras voltadas à produção de uma forma/objeto.

E se há artifício em todo tipo de saber cujas regras são capazes de gerar obras de arte, da mesma maneira, a obra que resulta de uma operação tecnicamente regrada é chamada “artificiosa”. A rigor, toda produção superior do engenho humano é artificiosa, pois supõe o domínio dos meios necessários para a consecução do seu fim. Ou seja, aqui, a noção relevante a sustentar a de artifício é a de arte entendida como “indústria”, “habilidade”, enfim, “técnica”, tal como caracterizada nos empregos aristotélicos do termo tékhn. É também dentro desse espectro semântico que se pode entender a criação artística no início do período moderno: o artista superior é aquele que tem um domínio racional de sua arte e está num espectro oposto ao do artista espontâneo, que faz o que faz sem saber como fez.

O artista superior controla os meios técnicos de modo a gerar muitas vezes a obra desejada; o artista menor apenas pode chegar a ela por acaso. Nessa perspectiva historicamente verossímil, um artista espontâneo é necessariamente inferior, pois a obra que é capaz de gerar não está submetido ao domínio intelectual de uma arte, mas apenas a um hábito ou empiria, tal é o artista de “feira”, ironizado por Horácio, na Epístola aos Pisões, que faz um único tipo de desenho, ainda quando ele não seja adequado ao conjunto do quadro executado.

Entretanto, para avançar o entendimento do “artifício” no período dito barroco, é preciso considerar uma oposição importante, assim descrita pelo jesuíta Baltasar Gracián, na sua Agudeza y arte de ingenio:

La primera distinción sea entre la agudeza de perspicacia y la de artificio; y esta es el asunto de nuestra arte. Aquella tiende a dar alcance a las dificultosas verdades, descubriendo la más recóndita; esta, no cuidando tanto deso, afecta la hermosura sutil; aquella es más útil, esta, deleitable. [A primeira distinção a fazer é entre a agudeza de perspicácia e a de artifício, sendo esta o assunto de nossa arte. Aquela tende a alcançar verdades difíceis, até descobrir a mais recôndita; esta, não cuidando tanto disso, atinge a formosura sutil; aquela é mais útil, esta, deleitável]

A noção de “perspicácia”, portanto, refere um tipo de inteligência que demanda estudo aprofundado das matérias a fim de encontrar a sua formulação verdadeira. É desse modo que a perspicácia aproxima a criação artística de categorias como “juízo”, que dizem respeito à capacidade de avaliar a verdade do que é enunciado. Já o tipo de correspondência descoberta pelo “artifício”, sem se opor ao que é verdadeiro, atende fundamentalmente à beleza peregrina, inesperada, distante das comparações habituais. Por isso mesmo, tratando-se de evento raro, a agudeza de artifício é também a mais capaz de deleitar.

Uma consequência do que ficou dito acima é que, enquanto domínio técnico de meios com vistas à produção de efeitos controlados, o artifício necessariamente admite magistério, doutrina — o que, na época, não implicava absolutamente em que o artista se sentisse vestindo uma “camisa de força”, como vai ser tão comum e tão equivocado dizer-se em tempos de vigência de uma matriz poética laica e burguesa. Ao contrário, para eles, é justamente a doutrina que garante a variedade e copiosidade dos efeitos agudos, raramente obtidos mediante a imitação espontânea, de resultados sempre episódicos. Da espontaneidade, não esperam senão poucos conceitos, e, pior, todos homogêneos entre si.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho