As artes no reino das selfies

Se o narcisismo moderno tornou o www nosso habitat, como rearticular arte e experiência sem reduzi-las a um reality show vulgar e kitsch?
Ilustração: Eduardo Souza
01/01/2022

Já não espanta ninguém que as pessoas que viajam, vão a um concerto ou a até um restaurante, tão logo cheguem ao local, saquem o celular, façam a mira e ponham-se a fotografar o que houver diante de si. Há algo de pouco polido nessa atitude, tanto ao chamar a atenção para si, como ao capturar imagens alheias do local, sem pedir licença às pessoas que estão ao lado — as quais nem sempre gostariam de se tornar pano de fundo daquelas imagens a ser divulgadas em fóruns estranhos. Se aparecessem, por exemplo, num site de simpatizantes fascistas, muitos se sentiriam desconfortáveis com isso. Porém, mudados os costumes, mudam-se os decoros, e tudo passa batido na grosseria geral do comportamento.

Mas caberia insistir no assunto e perguntar o que tanto fotografam as pessoas, e por que o fazem. Qual é, afinal, o interesse dessas fotografias de diletante, que distorcem e desfiguram, mais do que revelam e apreendem qualquer coisa de relevante a propósito da situação que registram? Poder-se-ia dizer que fotografam para guardar sempre consigo as imagens das coisas amadas que motivam as fotos. Mas com frequência as pessoas fotografam também a si mesmas diante das coisas supostamente amadas. Sorrindo ou fazendo caretas expressivas, produzem então as chamadas selfies, que ocupam a maior parte da imagem, senão toda ela, ficando ao fundo as tais coisas admiráveis que gostariam de guardar para sempre.

A ser mesmo assim, seria preciso admitir que a imagem que o fotógrafo amador faz de si é julgada por ele como sendo ao menos tão relevante quanto as outras coisas que o motivaram a tirar as fotos. Admitir, portanto, que o impelia a fotografar não tanto o registro de coisas admiráveis, mas o registro da sua presença junto delas — ou mesmo à frente delas! E qual o sentido desse registro em que o amante encobre o amado? E por que tanta gente se sente compelida a fazê-lo? Narcisismo? Mas é tudo tão geral e anônimo. Talvez um narcisismo difuso do zeitgeist?

Mas então por que a necessidade desse registro tornar-se publicidade para outro? Pois a selfie nunca basta a si mesma: vem logo acompanhada do lançamento da imagem na rede social. Faz sentido pensar num Narciso que não goza com a imagem de si que deveria amar mais do que tudo? Um Narciso que não se admira sem depender da admiração alheia? Como entender que se queira garantir a muitos — de fato, à máxima quantidade de pessoas —, que visitou aquele lugar, que esteve naquele concerto, que apreciou a ceia rara que lhe foi servida naquele local invejável?

Se algo assim se revela no gesto de quem saca a câmera e a dispara diante do que não deve ser apenas experiência, mas objeto de divulgação, quem é o destinatário da prova visual oferecida pela selfie? Quem são esses tipos imprescindíveis, já que não se é capaz de ignorá-los? E qual o propósito dessas provas? Provar a presença ou também acutilar um tipo de competição em que a prova lhe daria alguma vantagem?

Tudo isso anda tão naturalizado que tais perguntas soam irritantes. E, no entanto, basta começar a fazê-las para que se desdobrem em outras que ameaçam toda a naturalidade do gesto da selfie. Suponhamos que esse gesto não busque atingir algum destinatário hostil e desconfiado, com o qual mantém algum tipo de competição pessoal, e apenas deseje uma inocente e sincera partilha de emoções, à imagem de uma carta que se escreve a um amigo sobre as delícias que logrou viver. Ocorre que cartas familiares (e não de negócios) se escrevem a amigos, privadamente. Ademais, são partilhas entre pessoas precisas e conhecidas, não entre um universo anônimo e indeterminado de indivíduos. Quando se trata de divulgação quantitativa, o implícito não é a partilha pessoal, mas a publicidade. A experiência dá lugar à promoção comercial. Desse ponto de vista, não há selfie que não aspire a ser mercadoria. Do contrário, teríamos de adotar uma tese absurda: a selfie existiria como forma de provar a si mesmo o que não precisaria ser provado para quem o viveu.

O paradoxo fica mais claro se passado para a primeira pessoa: o vivido por mim só me convenceria de que eu o vivi realmente, depois que eu provasse que de fato o vivi — e não é a mim que o devo provar, mas a um conjunto virtual de pessoas que não conheço, não tem privança comigo, se é que me conhece. Vale dizer: a prova da selfie atua como condição ontologicamente superior ao vivido, sendo o registro mais importante do que a experiência, e o juízo alheio existe como condição epistemologicamente superior de conhecimento da experiência sensível. Não parece absurdo? Não parece teatro do absurdo, quando tudo é dado como natural?

Em suma: no reino da selfie, a experiência não tem valor antes do registro que adquira função publicitária, no âmbito de uma competição não declarada. Por meio do registro na rede, é preciso capitalizar a experiência, que, no mesmo processo, por causa dele, perde valor como experiência propriamente. Ou seja, a selfie propõe uma disputa de valor dentro da dinâmica própria da rede social, e não de uma viagem particular dos sentidos. Tudo começa, por assim dizer, num gesto de má educação e termina numa conta bancária imaginária — delírio constrangido por essa mesma dinâmica. A selfie é a miragem que permite passar de uma a outra.

Esse tipo de comportamento generalizado, obviamente interfere nas artes. Por exemplo, explica o que ocorreu na DOCUMENTA de Kassel de alguns anos atrás, quando a curadora, Carolyn Christov-Bakargiev, concentrou toda a exposição em torno da noção de “unwired” [desplugado]. Tratava-se de articular a ideia de arte com a de um dispositivo de saída da rede: “[to be] in one place and not in another place, in one time and not in another time, just here, in this place, in with this food, these animals, these people, poorer, and richer too”. [Estar num lugar e não em outro lugar, num tempo e não em outro tempo, apenas aqui, neste lugar, com este alimento, estes animais, esta gente, mais pobre, e mais rica também”]

Não impressiona saber que seja preciso produzir um protocolo da curadoria, uma normativa que obrigue a olhar e ver, a estar onde se está? Há aí a evidência espantosa de que, se quiséssemos mesmo “desplugar” (o que não parece uma imagem confiável de nosso desejo), teríamos de reaprender tudo: a ficar no próprio lugar, no tempo local, a deixar de falar com quem não está ao lado, a olhar sem fotografar o que se olha ou faz para reenviar aos que não estão lá para ver, a criar sem expectativa da quantidade dos que se engajam na criação, etc., etc.

A notar enfim que a declaração inclusiva de “pobres e ricos” da curadora, é também evidência de que “desplugar” não é categoria que vá muito longe como enfrentamento da degradação da experiência em publicidade, já que parece dar de barato que a batalha vai ser travada no modo despolitizado de um mundo sem classes. E resta a questão: se www se tornou o nosso habitat, como rearticular arte e experiência sem reduzi-las a um reality show vulgar e kitsch?

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho