A literatura negligenciada das cartas

As cartas do padre Vieira têm interesse literário, histórico e político
Ilustração: Carolina Vigna
30/04/2019

A restrição dos estudos literários no Brasil à ficção e à poesia tout court é um desastre documental, histórico e teórico, para dizer o mínimo. Documental, porque o desinteresse deixa perder um material riquíssimo relativo à produção letrada no Brasil, desde os primórdios da colônia até o presente. Histórico, porque o material desdenhado fica sem avaliação adequada, limitando a perspectiva temporal ao passado próximo ou ao presente, gerando anacronismos primários. Teórico, porque a concepção de literatura como determinada pelo estatuto ficcional ou lírico não se sustenta senão numa faixa de questões relativas basicamente ao período iluminista-romântico, quando a ideia de “literatura” se emancipa da de outras práticas intelectuais.

Para dar um exemplo da potência desse material que tem sido negligenciado, basta ver a relevância dos epistolários que começam a ser copilados, identificados e estudados sistematicamente no Brasil, mas ainda assim muito mais nos Arquivos e Departamentos de História do que nos de Letras, o que traduz uma perda muito grande para os últimos. Para evidenciá-la, basta, por exemplo, dar uma olhada sobre o epistolário do Padre Antonio Vieira (1608-1697), cuja copiosidade, variedade de assuntos, relevância política e força literária são impressionantes.

A coleção das cartas do Padre Vieira é crescente e já está próxima da casa do milhar, representando o fruto de um longo e contínuo trabalho de compilação iniciado logo depois da sua morte. Assim, junto ao seu espólio, as cartas de Vieira foram reunidas pelo padre Antonio Maria Bonucci, jesuíta italiano a servir na missão da Bahia, que, por sua vez, as entregou ao inquisidor geral de Lisboa, D. Nuno da Cunha. Este as repassou ao 4º Conde da Ericeira, D. Luís de Meneses, figura notável da Corte portuguesa, com quem Vieira manteve intensa e importante correspondência no último quarto de sua vida.

O conde ajunta ao espólio, além das cartas que Vieira lhe endereçara pessoalmente, também aquelas reunidas por um amigo comum, o primeiro Duque do Cadaval, D. Nuno Álvares Pereira de Melo, que fora igualmente um dos mais assíduos correspondentes do jesuíta. Essa primeira reunião de cartas acabou sendo editada em dois tomos, em 1735, graças à contribuição do padre oratoriano Antônio dos Reis. Um terceiro tomo apareceu em 1746, desta vez preparado pelo padre Francisco Antônio Monteiro. Nesse mesmo período, novas cartas foram incluídas nos volumes intitulados Vozes saudosas (1736) e Voz sagrada (1748).

Depois disso, as cartas de Vieira apenas reapareceram com acréscimos relevantes na edição intitulada Obras completas, em quatro tomos, lançada pela editora lisboeta J. M. C. Seabra & T. Q. Antunes, em 1854-1855, perfazendo um total de mais de 500 peças. Com outro pequeno acréscimo, a Empresa Literária Fluminense, 20 anos depois, editou dois volumes de cartas vieirianas. Contudo, é a compilação de João Lúcio de Azevedo, saída em três volumes entre os anos de 1925 e 1928, que vai se tornar um marco na edição do epistolário do jesuíta. A edição apresenta um grande número de cartas inéditas, atingindo um total de mais de 720 unidades, com correções das versões anteriores, notas de identificação das pessoas citadas, bem como esclarecimentos sobre as situações e assuntos implicados na correspondência.

Depois dela, pequenos acréscimos foram feitos por vários estudiosos, cabendo citar Clado Ribeiro Lessa (Cartas inéditas do Padre Antonio Vieira, RJ, Typografia S. José, 1934); Serafim Leite (Novas cartas jesuíticas: de Nóbrega a Vieira, SP, Companhia Editora Nacional, 1940); C.R. Boxer (Quatro cartas inéditas do Padre António Vieira, revista Brotéria, 45, de 1947); Aníbal Pinto de Castro (O Padre António Vieira e Cosme III de Médicis: com 4 cartas inéditas, Coimbra, Revista de História Literária de Portugal, 1, 1962).

A história não acabou, entretanto. Está saindo agora mesmo no Brasil, no bojo da coleção de 30 volumes de obras do Padre Vieira, lançada pela Edições Loyola, nada menos do que cinco tomos especialmente dedicados à sua atividade epistolar. Imagino que deva ser o conjunto mais completo editado até hoje, mas confesso que ainda não tive oportunidade de examiná-lo e nada de mais preciso posso dizer a respeito.

Entre os principais correspondentes de Vieira, estão personalidades como D. Vasco Luis da Gama, Conde da Vidigueira, depois Marquês de Nisa, embaixador de Portugal em Paris; D. João da Silva, Marquês de Gouveia, membro do governo de D. João IV, e, como Vieira, desterrado de Lisboa durante o governo de D. Afonso VI; Duarte Ribeiro de Macedo, enviado diplomático a Paris e depois a Madri; D. Rodrigo de Meneses, regedor de Justiças, homem de confiança do rei D. Pedro; D. Teodósio de Melo, cônego da Sé de Lisboa; e o já citado Duque do Cadaval.

Esse elenco dos correspondentes assíduos de Vieira deixa claro que o jesuíta entendia a epistolografia sobretudo como atividade letrada no âmbito da política. Ele escreve frequentemente a homens ligados ao governo de D. João IV, os quais, com a morte do soberano, constituíram a facção que tomou o partido da regente D. Luísa contra a subida ao trono de Afonso VI. Mais tarde, foi essa facção, com a notável exceção do próprio Vieira, que retornou ao poder com o governo do Príncipe D. Pedro.

São três os principais conjuntos temáticos de sua correspondência, sem ordem de preferência ou relevância: as cartas atinentes às missões diplomáticas a Paris, Haia e Roma, a serviço de D. João IV, a fim de sustentar a coroa portuguesa em meio a guerras contra Espanha e Holanda; as cartas relativas à autonomia das missões jesuíticas nas entradas ao sertão e no trato dos negócios indígenas em suas relações com a metrópole, o governo local, os moradores e as demais ordens religiosas; as cartas relativas ao processo movido contra ele pelo Tribunal do Santo Ofício de Coimbra, sob alegação de vários crimes de heresia, especialmente os de judaísmo, que lhe foram atribuídos em contrapartida a suas várias tentativas de obter as “reformas dos estilos” da Inquisição portuguesa, o que incluía garantia de não confisco dos bens dos judeus e cristãos-novos que aplicassem o seu cabedal nas companhias de comércio marítimo que Vieira sugeria criar em Portugal.

Duas cartas em especial costumam ser destacadas desse conjunto: a Carta Ânua da Província do Brasil, escrita em latim, por ordem do Provincial da Bahia ao Geral da Companhia, dando conta das ocorrências dos anos 1624-25, quando a cidade da Bahia cai sob ataque holandês, e também a carta conhecida como “Esperanças de Portugal, V Império do Mundo”, de 29 de abril de 1659, a propósito da morte de D. João IV, dirigida ao Padre André Fernandes, SJ, confessor da viúva D. Luísa, a qual teria consequências enormes para a sua vida, já que se tornou a base da qualificação dos crimes que lhe foram imputados pelo Tribunal do Santo Ofício de Coimbra.

Enfim, é um conjunto maravilhoso de escritos, cujo interesse literário não é jamais menor do que o histórico ou político.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho