A chatice dos clássicos

A má fama de muitas obras consideradas essenciais advém não exatamente de seu conteúdo dito complexo, mas das condições desfavoráveis de leitura
Ilustração: Tereza Yamashita
01/04/2022

Em minha longa carreira de professor de literatura, uma questão com a qual várias vezes me vi confrontado, em aulas, entrevistas, conversas — talvez devido ao meu interesse particular pela literatura do início do período moderno, mas certamente não apenas por isso —, foi a de explicar o estranho caso de haver livros importantes, os chamados “clássicos” da história da literatura, que frequentemente são vistos como difíceis, impenetráveis, ou mesmo francamente chatos para o leitor não especialista.

Diante da interpelação, muitos professores sequer admitiam a questão e apenas reafirmavam a relevância histórica desses grandes livros, seja qual fosse a reação subjetiva dos leitores diante deles. Eram chamados de “elitistas”.

Outros, mais próximos dos interesses de mercado ou que se sentiam mais ligados ao que supunham ser uma sensibilidade jovem, concordavam imediatamente com o tédio suscitado pelos clássicos e acreditavam que, para conquistar coração e mente dos alunos, valia a pena substituir aulas de Camões ou de Machado por autores atuais de sucesso entre os jovens, de J. K. Rowling aos mangás. Eram chamados de “populistas”.

Acredito que seja possível ir além dessas posições apriorísticas, em busca de uma compreensão mais precisa do fenômeno interessante da chatice dos clássicos. Por exemplo, na minha experiência, as vezes em que essa questão apareceu de forma mais aguda, esteve sempre ligada a condições de leitura muito desfavoráveis e externas às próprias obras. Situações didáticas ou cívicas, nomeadamente, tornam um livro, por melhor que seja, muito difícil de ler.

Um exemplo pessoal, mas que atingiu a todos de minha geração, diz respeito justamente a Os Lusíadas, associado nas aulas de português à análise sintática — e, em Portugal, pior ainda, ao Dia da Raça salazarista. Era, por assim dizer, detestável didaticamente e ideologicamente. Essas duas situações de uso daquela obra-prima tendiam a ignorar a ideia de fruição estética, de modo que falar em chatice aí tem mais a ver com normativismo escolar e com nacionalismo tacanho do que com o poema épico propriamente dito, cuja avaliação justa, nessas circunstâncias, parece bem improvável de ser feita. Este é o primeiro ponto a considerar.

Outra questão tem a ver com o fato de que as obras mais extraordinárias não são compostas apenas de partes que apaixonam à primeira vista. Diria que, quase ao contrário, tendem a resistir ao que já está definido como agradável, pois a obra de arte costuma ter personalidade forte e pegada própria. É mesmo condição da sua apreciação submeter-se ao seu timing, descobrir a riqueza de seu arranjo invulgar. Entrar com pressa no jardim mais delicioso ou no museu mais importante do mundo pode excitar apenas a impaciência e a incompreensão.

Vale dizer: uma concepção de leitura imediatista, desatenta ao que o livro pode oferecer em seus próprios termos, não ajuda a ler obras de qualidade. Supõe equivocadamente que elas se ajustem ao gosto costumeiro, e que se comportem como o açougueiro que entrega ao cliente o tipo de corte que ele prefere ou tem condição de comprar em dinheiro vivo. Nada disso funciona com obras de arte poderosas, que abrigam dentro de si uma ordem complexa, cujo impacto obriga a considerar a economia de cada uma das partes na produção do seu efeito total.

Em resumo, diria que, quanto mais poderosa a obra, mais exige disponibilidade e submissão do leitor à sua forma de conduzir a leitura. Não se trata de algo cansativo em si mesmo, ou estranho ao prazer do texto. É uma questão de disposição da inteligência do leitor à autoria inscrita nela — esta sim, o núcleo irredutível da aptidão de uma obra para mover o seu leitor. Na leitura, não há maior prazer do que o de descobrir uma obra de caráter, que pode deixar marcas eternas em quem se entrega a ela.

Outro aspecto a considerar é que clássicos, em geral, referem obras de épocas relativamente distantes, uma vez que supõem um certo período de acumulação da fortuna crítica. Essa distância temporal faz com que muitas referências conhecidas do leitor de sua época originária — não falo apenas do léxico empregado e das gírias já desaparecidas, mas também da variedade de registros linguísticos, das crenças de época compartilhadas, das nuances das circunstâncias históricas, das convenções letradas admitidas etc. —, tornem-se ignoradas, o que obriga o leitor de hoje a algum estudo ou prévia erudição. Nos dois casos, o pressuposto é sempre haver algum trabalho do espírito. Não há mal algum nisso: espírito e graça têm muito de trabalho também.

Há aqui, portanto, uma questão de legibilidade que inevitavelmente introduz exigências na leitura. E é certo que a dependência de notas e explicações pode interferir na maneira de ler, tornando as obras menos prazerosas numa primeira abordagem. No entanto, com um pouco mais de tempo e de familiaridade com o texto, cresce muito a chance de se perceber o interesse dele. O que era apenas penoso, torna-se desafiador.

Tais aspectos — condição de leitura, imediatismo de consumo e distanciamento espácio-temporal —, ajudam a explicar boa parte dos comentários reativos sobre a chatice dos clássicos. Parece claro, portanto, que o problema não reside neles, mas em condições desfavoráveis de leitura. De qualquer modo, em última instância, preciso dizer que acredito no poder de autoesclarecimento das grandes obras: mesmo nas piores circunstâncias, elas podem achar um modo inesperado de afetar o leitor, embora os caminhos para afetá-lo sejam diferentes para cada um.

Admitido que o tédio diante do clássico advém, principalmente, do mau uso que é feito dele, isso não significa que todos os clássicos, bem lidos, vão ser amados, sem restrição. Mesmo excelentes leitores, com bom repertório e boa capacidade de penetração das obras, têm as suas preferências, ou até tendências intuitivas de leitura que fazem com que leiam alguns livros melhor do que outros.

Dou um exemplo bem pessoal e talvez indiscreto: o melhor professor que tive no meu tempo de graduação foi Haquira Osakabe, um leitor brilhante capaz de desvendar as obras mais obscuras. Mas ele, a despeito da inteligência e do gosto elegante, não era especialmente bom para ler comédias. O seu espírito, algo místico, não o dispunha a apreciar obras que considerassem o mundo com humor ou ceticismo. Outros leitores, bons leitores, têm dificuldade de ler bem obras que pedem um tipo de imaginação estranha ao quotidiano mais realista. Alguns ainda, como eu mesmo, sofrem um bocado para lidar com obras que trazem mensagens. Acatar o próprio gosto nem sempre é fácil.

Esses pontos que elenquei não pretendem firmar nenhum protocolo no trato dos clássicos. Em literatura não há dever; dever é já um começo de chateação. O fundamental é se dispor a conhecer as obras, num corpo a corpo pessoal e intransferível. Basta isso para se precipitar o que de melhor pode vir do “clássico”.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

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