A centralidade achada e perdida da literatura

O protagonismo da ficção como condutora das preocupações sociais e intelectuais é recente e durou pouco; hoje é apenas uma fórmula burocrática
Ilustração: Aline Daka
01/11/2021

A ideia da literatura como centro — seja das práticas artísticas, seja dos estudos nas áreas de humanidades — é recente. De fato, surge apenas no século 19; nos séculos anteriores, a filosofia e as ciências, assim como, antes delas, a religião e a teologia, ocupam o centro das preocupações sociais e intelectuais. Sendo recente, o protagonismo literário não chegou a durar muito mais do que um século. Hoje, quando alardeado, funciona sobretudo como fórmula burocrática de humanismos esvaziados ou declaração edulcorada de gosto individual (“eu amo literatura”), não como discurso de reconhecimento efetivo de um status constitutivo de determinada sociedade.

O tema da centralidade da literatura foi discutido, entre outros, pelo acadêmico inglês Bill Readings, autor de The university in ruins (Cambridge, Harvard University Press, 1996), de que há uma ótima tradução portuguesa (“A universidade em ruínas”), publicada pela editora Angelus Novus, de Coimbra, em 2003. A meu ver, é livro imprescindível para a compreensão do funcionamento contemporâneo da literatura, conquanto o autor, precocemente falecido, sequer tenha lhe dado um acabamento definitivo. De maneira particularmente elucidativa, ele demonstra a articulação entre a literatura e a formação do Estado-Nação moderno, no âmbito dos currículos da Universidades anglo-saxãs — o que se transfere facilmente para o ambiente universitário mundial, uma vez que aquelas fornecem o seu modelo hegemônico.

Assim, Readings mostra que apenas quando se tratava de fornecer um modelo de organização social diverso daquele do ancien régime, associado a valores aristocráticos como região de origem, práticas consuetudinárias, linhagens, ofícios, e, enfim, relações estamentais e doutrinas religiosas, é que a noção de literatura ganha um impulso inédito até então. Isto porque, foi da literatura, mais do que qualquer outra área do conhecimento, que se esperou a evidência de um sentimento “nacional” que estava sendo gerado como natureza e instinto, que, por sua vez, operavam como fundamento ontológico de um projeto político consciente.

Ou seja, apenas prestando-se ao papel de laboratório de fabricação dessa nova comunidade nacional, cuja existência não podia ser senão largamente “imaginária”, para usar o termo consagrado por Benedict Anderson, a literatura alcançou estatuto social estratégico. Tornou-se, por assim dizer, cúmplice privilegiada de uma invenção que ainda tateava experimentalmente a sua base material e histórica.

O principal formulador dessa conjunção historicamente bem-sucedida de literatura, universidade e sentimento nacional foi, sem dúvida, John Henry Newman, o célebre Cardeal Newman, cujo livro The ideia of University, de 1858, é crucial no debate internacional sobre a concepção moderna da instituição universitária. A sua proposição básica é a de que a literatura é disciplina decisiva para produzir o sentimento de pertença entre as pessoas que constituem uma nação. Nenhum documento ou fato histórico produziria essa liga afetiva de forma tão eficaz como a ficção o poderia fazer.

A pensar nesses termos, portanto, a centralidade da literatura é diretamente dependente tanto da relevância e expansão da instituição universitária dentro da sociedade, como das condições históricas que favorecem narrativas fundadas na ideia de Estado-Nação. Ou, dito de outra maneira, a literatura ganha projeção e ascendência sobre as demais áreas de conhecimento quando se torna o lugar privilegiado de onde emana uma espécie de épica nacional.

É exatamente no interior do nexo Universidade-Estado-Nação, pensada pelo Cardeal Newman, que acontece a grande reversão do cânone intelectual vigente até então. Nas palavras de Readings: “Plato’s Ion has been reversed, and it’s literature that can train the cast of mind required to understand all other sciences and professions” (op. cit., p. 76) [O íon de Platão foi revertido e é a literatura que pode agora exercitar o repertório mental necessário para compreender todas as outras ciências e profissões].

Com isso em mente, é possível compreender o grande protagonismo assumido pelos historiadores universitários da literatura nos dois últimos séculos, pois são eles os operadores dessa concepção de literatura integrada, avaliada e submetida à constituição de um corpo nacional coeso, orgânico e autônomo. Por isso, no Brasil, vai-se falar da “nossa” literatura, como se se falasse de algo natural em todos os que aqui nasceram, e do qual participassem todos, de forma equânime, de uma mesma aspiração de soberania política e de destinação histórica.

Nem é preciso dar exemplos: é notório que as mais influentes histórias da Literatura Brasileira — assim mesmo, no singular e em maiúscula, para exalar substância —, são exatamente aquelas articuladas no âmbito de uma teleologia nacionalista na qual o escritor é tanto maior quanto mais se inscreve a serviço da construção de uma nacionalidade independente. À perfeita imagem do projeto de Newman, as histórias literárias aplicaram-se a estabelecer vínculos entre a constituição do Estado, o sentimento coletivo de nacionalidade, a formação espiritual e intelectual de cada indivíduo e a literatura, a qual, aqui, surge recoberta de um estatuto grave de missão, ainda quando pensada em termos laicos.

A questão, entretanto, é que não apenas o Brasil, mas o mundo, vive há tempos uma crise da questão nacional. A globalização e o neoliberalismo, que tornou rotineira a circulação internacional do capital, minou a soberania material dos Estados nacionais e obviamente não deixaria de abalar a densidade espiritual da missão literária. Esse é talvez o fenômeno mundial mais conhecido e vivido pelos contemporâneos, a par do assalto da tecnologia virtual, que é o seu grande condutor. Por isso, de um modo ou de outro, a antes onipresente ideia do Estado-Nação acabou desnaturalizada como fulcro da história dos povos e, por consequência, como orientação da história literária, tal como se consolidara nos séculos 19 e 20.

Isto posto, a questão literária atual revela-se uma verdadeira encruzilhada de contradições. Diante da quebra da hegemonia do Estado nacional, o que mais poderá sedimentar historicamente algum protagonismo da literatura? Mas essa sedimentação, qualquer que seja, não se fará sempre à custa de curvá-la diante de uma missão edificante, em termos coletivos ou individuais? Pior, não implicará em tentar produzir uma épica da globalização ou, quem sabe, do neoliberalismo? Não será um preço alto demais valorizá-la justamente por aquilo que a sobredetermina e domestica? E será que, por outro lado, a ruína do seu protagonismo não poderia ser uma bem-vinda abertura para si mesma e para as suas práticas mais radicais e desestabilizadoras? Não é fácil responder positivamente a quaisquer dessas questões, mas ao menos negativamente a uma delas é muito fácil: nada seria mais regressivo e reacionário do que imaginar o Estado-Nação reduzido à Pátria-Amada — o que, aliás, dispensa completamente qualquer literatura além da que rasteja nos panfletos fundamentalistas do fim do mundo.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho