Um presente de Natal

A experiência de uma professora com alunos carentes em uma livraria de shopping mostra a potência do encantamento da literatura em jovens leitores
Ilustração: Maíra Lacerda
01/12/2021

Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda

Por que não pode esta coluna fortalecer-se contra o desalento e trazer como presente a quem a lê e a nós mesmas, que a escrevemos e ilustramos, um conto de Natal? Sem Scrooge, nem espíritos, mas com um menino a viver uma experiência ímpar e gente de ideias e ação? Vamos lá?

Há alguns anos, nem muitos, nem poucos, uma professora resolveu se perguntar que livros crianças pobres escolheriam se fossem levadas a uma boa livraria e tivessem o dinheiro para comprá-los. Chamava-se Marisol Barenco, e o nome já dizia um bocado. Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, desenvolvia trabalho pedagógico e de pesquisa em uma escola pública de Niterói, atendendo a famílias de baixa renda.

A ideia inicial era propiciar o acesso a bens culturais, incluindo dotar a turma com que trabalhava de uma pequena biblioteca, e foi aí que se enganchou a tal pergunta. Montou um projeto muito bem montado, com os devidos objetivos, várias atividades, formas de avaliação e justificativas, comprometendo-se com relatórios e outras prestações de contas. Obteve o financiamento oficial que solicitou e pôs mãos à obra.

O encerramento previa um passeio ao Jardim Botânico do Rio de Janeiro e em seguida a ida à livraria de um grande shopping na zona Sul da cidade. O combinado era que as crianças escolhessem os livros de forma livre, e Marisol pagaria por eles com a verba previamente destinada a isso.

Acerto feito com a livraria, lá foi a garotada ver, mexer e remexer, sentar no chão, discutir, comparar. Guilherme não fez por menos: escolheu um livro caro, de capa dura e atraente, com relevos e dourados, e cuja história era a de um menino não menos irrequieto e problemático que ele. Parecia apaixonado por sua escolha, que, tão logo feita, foi pra junto do peito, em abraço forte. O olhar passeou ainda pelas prateleiras, enquanto o resto da turma acabava de escolher, mas o abraço não se desfez.

Mostrou desconfiança ao precisar entregar o livro à moça da caixa, mas deu um jeito de manter o dedo em cima do seu livro, enquanto esperava a sacola para guardá-lo. Não se interessou em ver os outros livros, nem mostrou o seu, reabraçado com força após a liberação do pagamento.

Hora de entrar no ônibus, a professora da turma pede os livros aos alunos. Precisa tê-los para o tombamento devido, foram comprados com dinheiro público. Ao espanto de alguns, explica: precisa anotar os dados de cada livro e registrá-los em um caderno que ficará bem guardado na escola. Guilherme resiste, entregar seu livro? Não disseram que poderia escolher, que ficaria na sua sala de aula, olhando pra ele, sendo aberto e fechado conforme quisesse? Sim, mas antes precisa passar por esse processo. O garoto não se convence. Socorre-se com Marisol, que não pode atendê-lo, a colega está certa. Ele resiste ainda, apertando mais os braços.

“Bobagem, Guilherme” — diz a professora —, “segunda-feira eu devolvo e você poderá ver o livro o quanto quiser”. Ele se agarra com Marisol, que confirma com um gesto a fala da outra. Não resta alternativa: entrega o livro como se entregasse a mãe. Vira as costas à professora, entra jururu no ônibus, espera que Marisol entre, para sentar-se ao lado dela. Está tenso, ela o acarinha. De repente, vira-se para ela: “Marisol, quanto falta pra chegar segunda-feira?”.

Presente a gente não explica muito. O pacote é oferecido ao presenteado, que deve abri-lo, de preferência na frente de quem o deu. Entre abrir ou não o subsequente sorriso, movem-se as expectativas de um, de outro. Você, que nos lê, abriu seu sorriso de enlevo em face do paradoxo deste menino que não tem ainda uma clara noção do tempo, mas aferra-se à escolha de seu desejo? Ficou de boca aberta com a ousadia dessa professora? Nós, do lado de cá, sorrimos. E mesmo tendo também nossas ousadias pedagógicas, nas quais investimos muitas vezes com dúvidas, mas de que nunca nos arrependemos, não deixamos de nos encantar com a história que trouxemos para compartilhar aqui.

Estranhou o roteiro ambicioso traçado por Marisol? Imaginou o espanto dessas crianças entrando num shopping de luxo? Vislumbrou, por sua vez, a surpresa dos frequentadores do shopping com uma turma de pardaizinhos inquietos e barulhentos circulando por ali? Pensou, ainda, no maravilhamento experimentado pelas crianças frente à grande livraria, estantes diversas, livros de todos os tipos e tamanhos, as crianças sabendo que um deles, qualquer um em princípio, poderia ser escolhido e levado para a sala de aula? Avaliou a riqueza dessa experiência? Juntou-se ao nosso sorriso afirmativo no valor da cultura do livro? Lembrou-se do livro de infância que levava abraçado por todo canto? Esse livro do afeto, marcado até a última ruga e impregnado para sempre na memória?

Entristeceu-se por saber que poucas, pouquíssimas crianças brasileiras podem desfrutar de experiência semelhante à que Marisol narrou para seus colegas de universidade? Ficou ainda mais triste por saber, segundo dados recentes, que a cada três dias o Brasil perde uma livraria? Não importa se são desfeitas em função das gigantes do mercado online, das plataformas que vendem esses objetos com total indiferença por sua natureza; se há mais produtos disputando o entretenimento e a formação das mentes, ou se, simplesmente, as pessoas estão ficando mais pobres. Livrarias se fecham porque há, a cada dia, menos leitores e leitoras. Porque as políticas públicas, há algum tempo, no país, têm manifestado uma perversa conjunção entre destruição deliberada e inépcia cabal.

Alegrou-se novamente porque a resiliência das pessoas e o terreno já conquistado à ignorância e à obscuridade mostram-se potentes? Porque há enorme quantidade de profissionais da educação e amantes da civilização divulgando livros e literatura de variadas e impensáveis maneiras, em todo este país? Porque há conquistas irreversíveis, fruto de desejo e luta popular, como as bibliotecas comunitárias?

Nós nos alegramos igualmente, e confirmamos o sentimento ao encontrar a lucidez de Eduardo Ribeiro da Luz Fernandes, da Livraria Casa da Árvore: “Uma livraria independente não deixa ninguém rico, obviamente. Mas traz muitas experiências interessantes e aponta um caminho mais humano para a cidade”. Aberta no ano passado no Rio de Janeiro, a livraria orienta-se pela clarividência do proprietário: “Vale a pena manter uma livraria para mostrar que tipo de sociedade queremos construir”.

Com seu livro sob a guarda da professora, Guilherme atravessou parte de uma cidade, uma ponte, entrou em outra cidade. Que importância tinha? Movia-se em outra dimensão — algo dentro dele segredava —, na qual um livro é sempre um presente.

Maíra Lacerda
Designer e ilustradora. Professora no Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF, com doutorado em Design pela PUC-Rio. Prêmio de tese pelo Museu da Casa Brasileira. Pesquisa os livros para crianças e jovens e a formação visual do leitor no laboratório LINC-Design.
Nilma Lacerda

Escritora, tradutora, professora, recebeu os prêmios Jabuti, Rio, Brasília de Literatura Infantojuvenil, entre outros. Trabalhou em várias universidades públicas, é colaboradora da UFF. Exerce a crítica de literatura para crianças e Jovens e mantém um Diário de navegação da palavra escrita na América Latina.

Rascunho