O Mindelo em escuta: a lusofonia e os livros para crianças

Evento em Cabo Verde reuniu 25 trabalhos apresentados em 4 dias, que tiveram como proposta a observação do livro infantil por meio de seus mediadores
Ilustração: Maíra Lacerda
01/07/2021

Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda

Cabem muitas paragens além de Portugal e Brasil no trajeto da língua portuguesa. Para garantir retorno e permanência, o colonizador instalava a língua, que se transformava, conservando no entanto a matriz vernacular. Mesclada aos idiomas locais, a fala lusa torna-se o canal oficial de comunicação de diversas nações, que apenas nos anos 1990 se organizaram como grupo interessado em trocas culturais, diplomáticas e comerciais. A lusofonia é o eixo da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, que compreendeu inicialmente Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe, com a posterior adesão de Timor Leste e Guiné Equatorial.

Nove países, mínimas nove formas de expressar-se em língua lusa, motivo de força e riqueza. Carece, no entanto, que nos conheçamos devidamente, e a literatura é das formas mais competentes para tal. Não são poucos os eventos em que circulam profissionais do livro, tornando próximas variadas dicções da língua, definindo e adensando paisagens, modos de ser e fazer. No tocante, porém, à literatura para crianças e jovens, pouco ainda se faz. Daí o motivo de regozijo em relação ao anúncio das I Jornadas Júnior da Língua Portuguesa no Mindelo, Cabo Verde. A organização é do Centro de Língua Portuguesa Camões no Mindelo, com parcerias variadas. À frente dos trabalhos está a professora portuguesa Sofia Santos, que recebeu, em 2017, de forma esmerada, escritores e escritoras brasileiras em Bruxelas. Era a Primavera Literária Brasileira, relevante evento organizado em sucessivas edições pelo professor Leonardo Tonus. O cuidado de Sofia mostrou-se de novo nestas I Jornadas, em formato online, em que cada participante foi apresentado de forma simpática por estudantes da Universidade de Cabo Verde.

Com 25 trabalhos apresentados em 4 dias, e disponíveis no YouTube, as Jornadas tiveram como proposta a observação do livro infantil por meio de seus vários mediadores — formadores, produtores e culturais —, e contemplaram temas caros à contemporaneidade: racismo, feminismo e homoafetividade. Foram veiculadas ainda questões como a vinculação da leitura literária ao aprendizado, seja da escrita ou das situações de vida, as teorizações sobre o ato de ler com as crianças, a inserção de produções literárias normalmente fora dos circuitos, a validação das obras multimodais e o diálogo autoral.

A abertura ficou a cargo de Sara Reis, professora na Universidade do Minho, que em uma chamada para a educação literária vale-se de exemplificação bibliográfica de base portuguesa. Como centro da cena, a infância desloca-se por livros literários, em suas múltiplas possibilidades: o livro-jogo, o livro-brinquedo, o livro ilustrado ou álbum, como é conhecido em países da Europa. Mariana Matos, de Barcelos, ocupa-se, junto a duas outras autoras, do álbum Dom Roberto, transposição em livro de peça teatral que alegrou infâncias passadas. O barbeiro já não se apresenta nos palcos, mas pode ser revisitado em sua nova expressão por leitores de variadas idades.

A resposta de leitores bem pequenos em uma turma de educação infantil — dois e três anos — à leitura literária é evidenciada por Dayane Cabral, do interior do Rio de Janeiro. Singular é o relato que faz da recepção de Anacleto, de Bartolomeu Campos de Queirós, em que a turma — ao contrário da movimentação habitual no momento de leitura — ficou em completo silêncio. A significativa resposta de recepção completou-se com informações posteriores, compartilhadas por familiares, sobre a “ruminação” do texto pelas crianças. Sobre o prazer e o susto da literatura na infância, a professora Rita Basílio, de Lisboa, trouxe reflexão para além dos costumeiros refrões, muito bem pontuada teoricamente.

A troca de experiências encontrou um bom espaço. Ainda que não costume fornecer maior densidade teórica, é do agrado certo do público docente. Crianças que contam histórias para outras mais novas, segundo mostra Solange Oliveira, de Sergipe, ou para pessoas idosas, na exposição de Maria Laura Pozzobon Spengler, de Santa Catarina, caracterizam o reconhecimento de um patrimônio comum e a necessidade de sua partilha. Dois pesquisadores de Rondônia, José Paz e Esdras Faria, propuseram a aproximação entre um conto de Andersen e outro de Conceição Evaristo, tendo a violência de gênero como foco, e Andreia Nunes realizou ótima recensão sobre os estereótipos de gênero na literatura para crianças em Portugal, analisando inclusive obras recentes e premiadas, nas quais antigos formatos discriminatórios permanecem. Em contrapartida, apresentou a obra Valente Valentina, de sua autoria, inspirada na história da primeira mulher astronauta. Responderia assim a um dos itens temáticos das jornadas: autores em diálogo com os desafios de escrever para crianças e jovens.

Por essa via, eu, Nilma, também segui, na confirmação de que escrevo com a jovem que sou, imersa nos dilemas de um tempo histórico e de angústia pessoal, e fiel, na idade madura, às inquietações juvenis. João Fonseca, entre Portugal e Cabo Verde, expõe um trabalho que se move no campo autoral e editorial, em projeto que presentifica a tradição dos contadores de história na cultura cabo-verdiana, valorizando a oralidade e a arte dos ilustradores regionais. O projeto “Histórias de meu país inventado” tem circulado pelas várias ilhas de Cabo Verde, mostrando os livros produzidos e lendo suas histórias. Fonseca ressalta a urgência das políticas públicas nessa direção e enfatiza a condição do livro para crianças como objeto de arte. Ficamos com enorme vontade de ler As tartarugas também choram.

As potencialidades da narrativa multimodal foram analisadas por Maria João Lopes, de Lisboa, que tomou a obra Aqui é um bom lugar, de Ana Pessoa e Joana Estrela, para percorrer conceitos do livro híbrido, no qual ilustrações e texto constroem sentidos no processo de leitura. Com a mira em potencialidades específicas, José Paz evidencia empenho para consideração da Amazônia como um espaço também cultural, em atividades de leitura realizadas com livros oriundos de projetos locais, como Encantos do rio Madeira: histórias ribeirinhas, de Nair Gurgel, e R de Rondônia, de Telma Lopes. Poderíamos objetar a visão instrumentadora subjacente, de foco na educação ambiental, mas reconhecemos a necessidade de uma “indicação direta ao fazer cotidiano” e ao espaço circundante como um dos elementos de identificação inerente à relação entre criança e livro.

Findas as I Jornadas, ansiamos pelas II, em Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe ou outro território lusófono, em que vozes diversas pontuem os discursos no necessário movimento decolonial. Nesta realização, a África se fez ouvir uma única vez, e pela voz de um português. Lisboa dominou, mas as vozes brasileiras circularam bem à vontade, inclusive aquelas fora do eixo hegemônico.

Até a próxima, e bem hajam, leitoras, leitores. Recebam, como Sofia Santos nos desejou, as mantenhas de Mindelo.

Maíra Lacerda
Designer e ilustradora. Professora no Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF, com doutorado em Design pela PUC-Rio. Prêmio de tese pelo Museu da Casa Brasileira. Pesquisa os livros para crianças e jovens e a formação visual do leitor no laboratório LINC-Design.
Nilma Lacerda

Escritora, tradutora, professora, recebeu os prêmios Jabuti, Rio, Brasília de Literatura Infantojuvenil, entre outros. Trabalhou em várias universidades públicas, é colaboradora da UFF. Exerce a crítica de literatura para crianças e Jovens e mantém um Diário de navegação da palavra escrita na América Latina.

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