Mal-estar, uma poética

Expressar o mal-estar, com todas as suas implicações, é das poucas garantias de o ser humano poder expressar
Ilustração: Maíra Lacerda
01/10/2023

Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda

Um jaguar pula de uma caixa, e arremessa o jovem Max no chão do escaler em que conseguira escapar de um naufrágio. Sentada na popa do barco, a fera imponente acompanhará o rapaz aterrorizado na travessia do oceano. Imaginando a todo momento a morte sob aquelas garras, ele busca adivinhar o comportamento do inimigo para tentar furtar-se a um trágico destino. A cena impactante, e apropriada de forma indevida por Yann Martel, em seu romance A vida de Pi, correu mundo em filme de Ang Lee, mas foi criada por Moacyr Scliar, um dos grandes escritores brasileiros do século 20.

Escrito em 1981, o livro Max e os felinos narra a história do jovem alemão, filho de um peleteiro, que assiste à ascensão do nazismo em seu país, e, ao se ver ameaçado, embarca em um navio carregado de animais com destino ao Brasil. Ocorre o naufrágio, e, no barco que usa para salvar-se, acaba aparecendo também o jaguar. A assombrosa presença lembra a Max do tigre empalhado em cima do armário na loja do pai, objeto de medo e angústia. Uma onça no alto de um morro, em terras brasileiras, será, bem mais tarde, o terceiro felino a ameaçá-lo.

Sem ter sido escrita para um leitor jovem, a obra cedo caiu no gosto desse público, e, conforme escrito na quarta capa da edição de 2001, da L&PM, deve seu sucesso ao fato

de agradar os seus leitores, de ser uma excelente história e de ser sistematicamente indicado por professores em escolas de todo o Brasil como exemplo de narrativa instigante e de alto valor literário. E muito deste “‘valor literário” se deve à inesquecível imagem de um homem e uma fera em um minúsculo barco no meio do oceano.

Uma cena extraordinária, não resta dúvida. Constituída de choque e impossibilidade de defesa, mostra-se como síntese do ser humano em confronto com sua fera. O contato com essa representação é expressão de mal-estar, sensação que pode ser resumida, em termos de dicionário, por “estado de inquietação, de aflição mal definida; ansiedade, insatisfação”.

O mal-estar não costuma ser delimitado de maneira específica, mostrando-se de forma difusa. Seus efeitos causam um sobressalto vago, mas incômodo, nem sempre suficiente para que seja ensaiada uma ação de fuga, mas na justa medida para criar uma sensação de ameaça, na expectativa de um possível ataque iminente e sem procedência clara. Configura-se como um pressentimento ruim em contínua expansão, sem que se consiga, muitas vezes, localizar sua origem; um sinal de alerta que não é disparado, mas também não é desativado.

É possível que a expressão de Freud, no célebre discurso em sua chegada à América, ofereça uma consistência devida ao sentimento de mal-estar. Ele nos dá a-verdade-em-si, a natureza daquilo que nós, humanos, somos, um animal disposto a impor sofrimento a seu semelhante, sem outro fim diferente de prazer ou de poder, como se vê nas guerras e em todas as outras formas de violência e atrocidade específicas do ser humano.

Aprendendo a temer o outro — tanto quanto a nós mesmos, talvez — mantemos constante estado de alerta, que não se dilui num enfrentamento eficaz. Verbos próximos ao mal-estar, saber e pressentir, promovem as sensações de impotência e da proximidade do mal. O tigre empalhado sobre o armário na loja do pai nunca atacou Max, nem poderia fazê-lo. Mas a fera ali estava para além de si mesma, um aviso do pai cruel, com efetivo poder de aniquilamento do filho. Esse saber, atrelado à real possibilidade de um repentino ataque paterno, mantém o jovem em permanente estado de susto.

Um perigo efetivo, no entanto, o atinge em cheio. A ação devastadora da polícia contra uma passeata socialista e a opressão do nazismo, espalhando-se como gás ruim, intoxicando, intimidando, submetendo, alcançam-no duramente. E no escaler no qual, mais tarde, busca sobreviver, há o jaguar, sujeitando-o a pescar sem descanso para alimentá-lo. O desfecho da viagem levanta perguntas que a personagem não consegue responder, mas encara com otimismo uma nova realidade de vida. No entanto, logo se impõem certas circunstâncias que fazem-no reviver, no Brasil, o pesadelo de sua pátria. Até enfrentar de forma cabal a fera a persegui-lo, Max não deve recuperar a tranquilidade.

Em trama hábil, Scliar discute o lugar do mal-estar na vida humana, construindo um protagonista que reconhece a situação, escolhendo submissão, fuga ou enfrentamento, conforme as condições que se apresentam e os recursos de que dispõe. Portanto, além do fascínio da cena de um homem e uma fera num barco no oceano, a capacidade de lidar com tal situação mostra-se igualmente como razão para o sucesso da novela entre seus leitores.

Na medida em que a experiência estética mantém estreita vinculação com a ética, a arte é um dos espaços fundamentais para a discussão do mal-estar. Instaurado o conflito, o leitor acompanha as personagens, em busca das causas e dos passos necessários à solução. Desde o momento em que a literatura tem seu início, lá está o mal-estar, a presença devidamente assegurada nesta expressão humana. Contudo, os controles exercidos sobre aquilo que crianças e jovens devem ler acabam por minimizar os conflitos, esvaziando a possibilidade de uma boa catarse ou de serem vivenciados, por sua representação, os aspectos menos agradáveis do comportamento humano e a totalidade do próprio mundo interior.

É muito importante que essa poética, na base de obras como Édipo rei, O morro dos ventos uivantes, Memórias póstumas de Brás Cubas, Eu sou um gato, Metamorfose, Terra sonâmbula, seja reconhecida como essencial também na literatura para crianças e jovens. Ao receber com dignidade as áreas delicadas da mente humana ou do corpo social, na clareza de que não lida com heroísmos ou esquemas, mas com opções que se abrem como leque em que nenhum dos extremos é livre de impurezas, essa poética age como chamada para consciência do caos e da possível ordenação humana.

Expressar o mal-estar, com todas as suas implicações, é das poucas garantias de o ser humano poder expressar, como Max fez, ao final de sua vida: “Estou em paz com meus felinos”. Estar em paz com suas feras pede a travessia do oceano no mesmo barco que elas. E leitores e leitoras de todas as idades têm o direito a essa experiência.

Maíra Lacerda
Designer e ilustradora. Professora no Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF, com doutorado em Design pela PUC-Rio. Prêmio de tese pelo Museu da Casa Brasileira. Pesquisa os livros para crianças e jovens e a formação visual do leitor no laboratório LINC-Design.
Nilma Lacerda

Escritora, tradutora, professora, recebeu os prêmios Jabuti, Rio, Brasília de Literatura Infantojuvenil, entre outros. Trabalhou em várias universidades públicas, é colaboradora da UFF. Exerce a crítica de literatura para crianças e Jovens e mantém um Diário de navegação da palavra escrita na América Latina.

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