Machado em horizonte de espelhos

Que novas leituras possibilitem reconhecer no autor de "Esaú e Jacó" a inestimável contribuição da etnia negra à definição de caminhos de nossa cultura
Ilustração: Maíra Lacerda (Colagem digital a partir de fotografias de Machado de Assis e ilustração de Fernando de Castro Lopes)
01/12/2020

Texto escrito em parceria com Maíra Lacerda

Os autores clássicos costumam apresentar dificuldades à compreensão dos leitores vindouros, seja por efeito do vocabulário, sejam as referências estritas de uma época ou certa forma de pensar que, com a passagem do tempo, perde a compreensão direta. Machado de Assis, entre nós, não é exceção. Autor para apreciação na maturidade, costuma ser leitura obrigatória de adolescentes, que usualmente não dispõem de arsenal para entender o amargor em relação à espécie humana, as referências irônicas, a complexidade de caráter expressa nos personagens com ambivalência de afetos e ambiguidade de comportamentos.

Se os desconfortos acima apontados podem ser vencidos com alguns cuidados prévios, também os aspectos mais densos do autor encontram, muitas vezes, auxílio nas várias adaptações dos textos machadianos para outros suportes, dentre os quais o livro ilustrado e a HQ, que têm alcançado sucesso de circulação. Esses últimos recursos, no entanto, são relativamente recentes, frutos de investimentos da indústria editorial e de políticas públicas com vistas à construção do Brasil como país de leitores.

É preciso tempo e sinergia para alcançar este objetivo. Ler é um valor, não um hábito; é um trabalho, não uma recreação. A gradação de dificuldade dos textos é fator indispensável à confiança necessária para avançar na experiência da leitura. O repertório textual viabiliza a compreensão, na medida em que permite elaborar de forma pessoal e comunitária a rede de significados inerente ao ato de ler. Assim, apresentar autores complexos a pessoas com pouca prática leitora pode gerar frustrações significativas. Ter clareza desse quadro e responsabilizar-se pela melhor resolução é parte da tarefa de professoras, professores. Mais: é questão vital que Machado seja lido com sabor, na esteira preconizada por Barthes.

A pesquisa de bons livros infantis para as filhas e a socialização dessa experiência com alunas e alunos do Ensino Fundamental público muito serviram a mim, Nilma, para vencer os impasses iniciais em relação ao trabalho com o autor em turmas de Ensino Superior, tanto na faculdade privada quanto na pública. Se, conforme observado em sala de aula, os livros ilustrados destinados usualmente aos leitores de menor idade podiam apontar importantes questões para leitores maiores, inclusive aqueles sem muito contato com o livro literário, o uso de uma obra como O equilibrista, de Fernanda Lopes de Almeida, poderia desempenhar papel semelhante nas aulas de graduação. Publicada para crianças em 1980 pela editora Ática, com ilustrações de Fernando de Castro Lopes, a partir de roteiro elaborado pela autora do texto verbal, a narrativa talvez emprestasse inesperado sabor ao trabalho com alunas e alunos de pouca, às vezes pouquíssima, experiência de leitura.

O livro narra a vida de um personagem que nasceu com um fio nas mãos para construir a própria existência, e que costumava se espantar com as reações das pessoas desequilibristas, incapazes de compreender uma vida que não se mostrava organizada da maneira convencional. Ao precisar deixar sua casa — que estava por um fio —, descobriu que não havia lugar pronto onde morar e que cabia a ele inventar os caminhos do fio que tinha nas mãos. “E a verdade é que não se arrependia”, ao descobrir a quantidade de coisas que podiam sair desse fio. Ainda que em certos momentos invejasse uma vida estável, com um chão comodamente estabelecido, o equilibrista aceitava bem sua condição, considerando haver nela partes boas e partes ruins.

Realizei a leitura como fazia com minhas turmas do Fundamental, mostrando as ilustrações enquanto lia, fazendo depois o livro circular pela sala para observação individual. A recepção havia sido ótima e seguiu-se uma boa conversa sobre os aspectos do verbal e do visual. Em apresentação despretensiosa, foram vistas questões de linguagem literal e figurada, ambiguidade de sentidos, representações da instabilidade permanente do mundo, volubilidade da alma humana. Após essa prática, entrou em cena outra experiência usualmente reservada ao universo infantil: pensei em oferecer àquelas leitoras e àqueles leitores Machado no fundo de um canudo espelhado. Por que não?

Os caleidoscópios foram para a sala de aula e após a identificação — infelizmente não era e continua não sendo um brinquedo comum —, a observação de que era para brincar. Olhar, mexer, rir, comentar com o colega. As turmas eram grandes, e todo mundo brincou, e todo mundo mexeu em pelo menos uns três caleidoscópios diferentes. Depois, uma síntese do que haviam dito enquanto olhavam: “nunca é igual”, “se mexer um quase nada, tudo muda, e é outra coisa”, “o miudinho fica multiplicado, se amplia”, “são peças diferentes e montam uma imagem única”. A partir dessas experiências, os movimentos narrativos e estilísticos de Machado podiam ser levantados e tornavam-se mais facilmente compreensíveis.

Alguns textos críticos acompanhavam a leitura analítica de Machado. Não costumavam ser muitos, pois o foco estava nos comentários, provocando e abrindo caminho ao percurso individual. Observava-se que a injustiça da escravidão, os limites impostos à mulher, a hipocrisia reinante na sociedade brasileira do Segundo Império são questões presentes no tratamento irônico, na forma corrosiva em que são evidenciados os considerados bons modos sociais, em narrativas como Pai contra mãe, O caso da vara, e em inúmeras outras passagens de sua obra. Da mesma forma, a falta de consciência da população para a alternância do sistema político aparece com um traço de galhofa em Esaú e Jacó, na dúvida do personagem Custódio sobre o título a mandar pintar na tabuleta de sua confeitaria: “do Império” ou “da República”? Grande escritor, Machado toma alguns desses temas “nas filigranas da narrativa”, segundo expressão de Roger Bastide, retomada por Antonio Candido.

Repeti a estratégia pedagógica algumas vezes, e sempre com êxito. Machado mostrava-se ao alcance da fruição de um público advindo, em geral, de experiências rarefeitas de leitura e sem muita afinidade com as metas de um curso de Letras. Estaríamos assim mais perto — pouco que fosse — daquele objetivo de um país de leitores e leitoras.

O caleidoscópio, tão útil para nossas aulas, continua a fornecer refrações possíveis para o escritor que ganha possibilidades variadas de abordagem, conforme o ferramental de pensamento disponível a cada época. Em 1979, fiz uma análise para Afrânio Coutinho sobre Dom Casmurro, em que o pensamento de Freud e de Melanie Klein apoiava a leitura de um afeto homoerótico de Bentinho em relação a Escobar, de realização inconcebível para a sociedade da época, sobretudo em certa extração social. Bentinho teria imputado a Capitu o afeto desviado de si. É importante destacar que apenas no momento em que ganhavam escuta, dentre outras, as vozes do feminismo e do homoerotismo é que a crítica poderia levantar tal aspecto.

O mesmo vem ocorrendo com as evidências do apagamento da negritude de Machado ao longo da História. Machado foi um homem de prestígio à sua época, e mostrou-se, como poucos, espectador e ator da sociedade de seu tempo. A inteligência rara e a pertinácia na aplicação de um projeto de vida pautado na respeitabilidade permitiram ao autor usufruir, em vida, das honrarias devidas àquele que já era considerado o maior dentre nossos escritores.

Que novas leituras possibilitem reconhecer em Machado — assim como em tantos outros homens e tantas outras mulheres — a inestimável contribuição da etnia negra à definição de caminhos de nossa cultura.

Maíra Lacerda
Designer e ilustradora. Professora no Instituto de Artes e Comunicação Social da UFF, com doutorado em Design pela PUC-Rio. Prêmio de tese pelo Museu da Casa Brasileira. Pesquisa os livros para crianças e jovens e a formação visual do leitor no laboratório LINC-Design.
Nilma Lacerda

Escritora, tradutora, professora, recebeu os prêmios Jabuti, Rio, Brasília de Literatura Infantojuvenil, entre outros. Trabalhou em várias universidades públicas, é colaboradora da UFF. Exerce a crítica de literatura para crianças e Jovens e mantém um Diário de navegação da palavra escrita na América Latina.

Rascunho