As palavras incompreendidas

A beleza das ideias apresentadas por c no romance “A insustentável leveza do ser”
Milan Kundera, autor de “A insustentável leveza do ser”
01/07/2025

No capítulo As palavras incompreendidas, do romance A insustentável leveza do ser, Milan Kundera nos convida a espiar o abismo linguístico e afetivo que separa as pessoas mesmo quando se amam, mesmo quando desejam se compreender. A linguagem, mais do que ponte, pode se revelar como muro: cada palavra carrega um universo próprio, um código existencial que não se deixa traduzir sem perdas, sem ruídos, sem feridas.

Kundera, com o olhar perspicaz de quem ausculta a alma humana, desmonta a ilusão de que o amor — ou qualquer relação — possa ser de pleno entendimento. É nesse território de desencontro que a narrativa se ancora, e é aí que a psicanálise também encontra sua morada mais íntima, já que o mesmo significante pode ter significados diferentes para quem a diz e para quem a ouve.

Franz e Sabina, dois dos personagens centrais desse capítulo, são apresentados como habitantes de léxicos distintos. Para cada um, palavras como “fidelidade”, “traição”, “beleza” ou “pátria” não apenas significam coisas diferentes; elas são, em si, experiências vividas de modo radicalmente singular. O que para Franz é luz, para Sabina é obscuridade. O que para um é música, para o outro é ruído. Não há tradução plenamente possível, apenas a constatação de que cada palavra pode nos aproximar ou afastar dos outros — e de nós mesmos.

Esse desencontro não é, contudo, motivo de lamento nostálgico. O romance é o espaço da ambivalência, da fratura, do sujeito dividido — condição essencial da modernidade. Assim, o mal-entendido não é acidente, mas a realidade da nossa comunicação. O amor, longe de ser fusão, é negociação constante com o inatingível.

A escuta psicanalítica, nesse contexto, é chamada a reconhecer o caráter sempre provisório e contextual do sentido. O significante não se fixa; o significado escapa, desliza, se transforma. O que resta é o trabalho de escuta: não a busca por um sentido último, mas aquilo que só se revela no intervalo, no quase.

A experiência literária — seja para quem escreve, seja para quem lê — é sempre um ofuscamento, um despertar súbito para aquilo que estava na sombra. O romance, ao expor as palavras incompreendidas, nos convoca  a habitar esse lugar de incerteza, onde cada nome é apenas tentativa, aproximação, jamais encontro completo.

A força do capítulo está, portanto, em sua recusa ao idílio, ao menos entre um casal que vai se reconhecendo como falantes de idiomas diferentes. Não há conciliação possível entre os códigos existenciais de ambos; há, sim, a beleza trágica do desencontro. Kundera, ao tematizar a incompreensão, faz do romance um espelho da condição humana: sujeitos fraturados, ambíguos, sempre à deriva entre o desejo de comunhão e o encontro com certa solidão.

As palavras incompreendidas é, em última instância, um convite ao reconhecimento do enigma do outro — e de si mesmo. Podemos dizer que a literatura, como a psicanálise, também é esse espaço onde o mal-entendido não é sempre obstáculo — embora algumas vezes o seja —, mas pode ser condição para o encontro — sempre precário, sempre provisório, sempre verdadeiro em sua própria insuficiência.

Fabiane Secches

É psicanalista, crítica literária e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo. Autora de Elena Ferrante, uma longa experiência de ausência (2020).

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