Inês Lourenço

Uma poeta que esmaga o sujeito medíocre e o cotidiano repetitivo
Inês Lourenço, autora de “Logros consentidos” Foto: João Paulo Coutinho
01/06/2007

Inês Lourenço nasceu no Porto, em 1942. Inês Lourenço detesta os rituais afetados da vida social literária. A poesia de Inês Lourenço circula muito pouco em Portugal. A poesia de Inês Lourenço é crítica: ela espicaça a moralidade caquética da sociedade pequena, do sujeito medíocre, do cotidiano repetitivo, da encenação cordial, do poeta pedante. Num de seus primeiros e-mails, respondendo a uma pergunta minha, sua arte poética foi se revelando aos poucos: “A poesia é sempre o desfazer do lugar-comum do clichê estafado, é sempre outro olhar sobre as coisas, os seres, as circunstâncias do mundo. Pode perseguir a transcendência ou a imanência, o sublime ou o burlesco, o sentido da vida ou o sentido da morte, mas é sempre, mesmo em alturas de crise e aparente fim dos tempos, uma grande forma de reinvenção”. Noutro e-mail, discorrendo novamente sobre sua prática poética: “Eu não procuro a beleza das coisas — até porque esse conceito está, desde as primeiras décadas do século 20, com o modernismo, fortemente erodido — mas sim as suas fissuras, os seus múltiplos sentidos ou sem-sentidos. Acho que não há, a priori, assuntos ou temas poéticos ou nobres. Uma folha de jornal velho voando na calçada pode ser tão poética como a mais brilhante das estrelas. Depende do olhar do poeta”.

Nos poemas de Inês Lourenço o eixo do sagrado manifesta-se sempre que a consciência subjetiva negocia com os fatos do cotidiano de igual para igual. As baratas, as cidades e os labirintos, as bonecas, as ruínas e as ruas, os anjos, os cães e a chuva não são menos humanos ou menos dignos do que o sujeito do discurso, apesar de este, cioso de sua superioridade intelectual, não poupar esforços para se manter sempre dois degraus acima do mundo e da sociedade dos quais infelizmente faz parte. Infelizmente porque às vezes é muito triste acompanhar as piruetas analíticas desse superior sujeito arrastado pelas sensações bestiais da vida em rebanho.

A mãe da Barbie morreu? O flanelinha viciado em todo tipo de sangüínea porcaria recolheu as moedas? Os anjos de Win Wenders estão fartos das asas da eternidade? Tudo isso é muito triste. Não seria, se o leitor não se identificasse tão intensamente com essa consciência subjetiva que, cozinhando a melancolia à flor da pele, articula, flexiona, comprime, rege, refoga e tempera cada verso como se disso dependesse sua sanidade de perfeito mestre-cuca. Tudo isso também não seria muito triste se não revelasse de modo tão doloroso que somos todos criaturas sem brilho, amedrontadas, insatisfeitas, pueris, condicionadas, sempre repetindo e repetindo e repetindo certos movimentos que a cada repetição escondem sua casca e suas barbatanas anacrônicas, afinal os velhos e os novos hábitos, apesar do plástico e do néon do mundo contemporâneo, pertencem mesmo à ancestral linhagem pré-cambriana.

O sexo no poema de Inês, por exemplo, não é mais a remota conjunção carnal dourada e idealizada dos beletristas de régua e compasso ou dos trovadores do rádio e do vinil. No poema de Inês o sexo voltou a ser algo cru e cruel: cópula, foda, declinação trágico-marítima. Agora o tratamento vulgar do ato fisiológico mais vulgar é, entre outros tratamentos intratáveis na opinião do público esnobe e afetado, o resultado mais autêntico que se deve esperar dos escritores que de fato fazem da própria vida a manifestação do sagrado. Por mais absurdo que isso possa parecer, a dimensão da libido e do coito é sustentada pelo sagrado que, por sua vez, só espalha sua luz e sua sombra quando invocado pela crueza malandra do sujeito lírico realmente perspicaz.

Livros da poeta
Logros consentidos (2005), publicado pela &etc; A enganosa respiração da manhã (2002), publicado pela Asa Editores; Um quarto com cidades ao fundo (poesia reunida, 2000), publicado pela Quasi Edições; Teoria da imunidade (1996), publicado pela Felício & Cabral; Os solistas (1994), publicado pela Limiar; Retinografia (1986), publicado pela Editora das Mulheres, e Cicatriz 100% (1980), publicado pela mesma editora.

Poemas de Inês Lourenço

A paixão segundo SJ

Passou a noite
de São João matando
baratas desprevenidas
habituadas a ninguém na cozinha
à essa hora tardia. O ruído
de fundo da cidade
com foguetório e algazarra em
estado obrigatório de festa
passava longe dessa
noite de frinchas e labirintos.
Algumas baratas tinham-se
refugiado no logro interno de
garrafas vazias, incapazes de
voltar a escalar o vidro. Só uma
saiu do romance de Clarice
incapaz de ser
comungada.

Possessio maris

para Adília Lopes

É tão banal no poema
saber dourar a cópula. Como, ao
amar, resistir à boa humilhação de
babélica e virtuosamente
foder e ser fodido? Assim

tão cruamente seja dita
a bíblia prática do conhecimento
dos corpos, livre de intertextos e
arredada da culpa e das pestes
racionais.

As almas sensíveis, minha amiga,
não acham sobre-humano nem
muito estético esse ato de achada
eficácia. Desdenham e enjoam
o látego terminal do gozo. Eternos
nautas em seco, aportam a doutos

ensaios e outras posições
elípticas, esquecidos do genitivo
de posse e das declinações trágico-marítimas
onde nunca ninguém possuiu
sem ser possuído.

Réquiem por Ruth Handler

Morreu ontem a mãe da Barbie,
a boneca adolescente. À semelhança de
Atena, Barbie saiu armada dum
cérebro, não divino, mas industrioso,
com a longa cabeleira e a azúlea mirada.

Morreu a mãe da Barbie, a filha
que nunca será órfã, pequeno duende
de sutiã 38 e de 33 polegadas
de altura. Trinta e três polegadas
multidesejantes de sonho
anatomicamente impossível.

Morreu a mãe da Barbie, que
faz balé, esqui, patins em linha e
todos os desportos radicais e tem
um namorado elegante que jamais
a trairá e amigos tão anatomicamente
imperfeitos como ela.

Morreu a mãe da Barbie, que vai
a todas as festas com muitos
vestidos de gala e enegreceu
há uns anos, qual Naomi Campbell, para
ser consumida pela boa
consciência racial do Ocidente.

Morreu a mãe da Barbie, que jamais
a viu, assim anatomicamente imutável,
padecer de uma gravidez adolescente.
A Barbie é sabida e deve ter tido educação
sexual. Que fará ela com o Ken
no regresso de tantas festas?

Nem paixão nem desgosto nem fome
ou uma boa sova dos adultos alteram
a sua fábula de plástico, muito menos
fabulosa do que a de Branca de Neve ou a
da Bela Adormecida, onde existiam
humanas bruxas, vencidas maldições
e príncipes que davam beijos para acordar.

Morreu a mãe da Barbie, cedo demais
para inventar uma Barbie de burka,
ou com explosivos escondidos no cinto. No
fim da vida continuava a vender milhões
de próteses mamárias, na seqüência da sua
própria mastectomia. Coisas sem brilho,
impossíveis de acontecer
à Barbie.

Cavalo

O guardador de carros
agita os braços, indicando
um lugar disponível. Junto
da praça da estátua eqüestre
recolhe com a mão magra
a gota de níquel que logo mais
correrá nas suas veias.

O céu sobre Berlin
(Der Himmel über Berlin)

No filme de Wenders, com
versos de Handke, os anjos fingem
estar fartos do tempo
infinito. Sonham com os
pequenos tempos de se sentar à mesa
a jogar cartas. Ser cumprimentado na
rua, nem que seja com um aceno. Ter
febre. Ficar com os dedos sujos
de ler o jornal. Entusiasmar-se com uma
refeição ou com a curva
de uma nuca. Mentir
com habilidade. Ao andar
sentir a ossatura se mexer a cada
passo. Supor, em vez de saber
sempre tudo. Cá embaixo os
humanos não suspeitam da beleza
do peso, que os segura à terra, e fingem
o futuro em cada minuto, para
deixar de dizer agora, agora, agora…

Valério Oliveira

É escritor e poeta. Autor, entre outros, de Todos os presidentes.

Rascunho