A fuga para dentro

Em cima da árvore, conto que o japonês Yasunami Kawabata escreveu em 1962. Um relato discreto, muito breve, mas afiado que, transformando a escrita em vida, me empurra de volta à minha própria infância
Ilustração: Bruno Schier.
31/07/2018

Espantados, presos a uma agitação de imagens cegas, de palavras discrepantes, de atos insanos, sentimos que precisamos parar e nos entender. Mas parar onde? Em que lugar podemos, realmente, fazer isso? Parar, recolher-se, voltar a si para, enfim, pensar e só depois com novo fôlego seguir em frente é um sonho humano que vem desde a longínqua infância. Parar, mas como? Onde encontrar abrigo? Mais uma vez, é na literatura que encontro uma resposta. Depois de muito rondar, deparo com uma inspiradora pista na leitura de Em cima da árvore, conto que o japonês Yasunami Kawabata escreveu em 1962. Um relato discreto, muito breve, mas afiado que, transformando a escrita em vida, me empurra de volta à minha própria infância.

No relato de Kawabata — que se inicia na página 451 dos assombrosos Contos da palma da mão, editados pela Estação Liberdade, em tradução direta do japonês de Meiko Shimon — o menino Keisuke, desgastado pelas brigas intermináveis entre os pais por causa de uma segunda mulher, resolve se esconder no alto de uma árvore, onde, sozinho, lê, pensa e se protege. Mantém seu esconderijo em segredo, mas, um dia, ele o revela à amiga Michiko, que, apesar do medo de cair, passa a acompanhá-lo em seu refúgio. “Mit-chan, é segredo, está bem?”, o garoto lhe pede, com insistência. “Eu fico muitas vezes aqui em cima. É segredo. Aqui em cima da árvore eu leio livros e estudo também. Não vai contar para ninguém, promete?”

Para um velho leitor, é inevitável lembrar, aqui, da torre de Michel de Montaigne, localizada no departamento francês da Dordonha, onde, no final do século 16, o filósofo se recolheu, cercado de livros, para escrever os célebres Ensaios. Desde então, escritores estão, quase sempre, em busca de um abrigo onde possam desaparecer para ser. Na verdade, esse desejo vem desde muito antes da literatura, vem de muito mais longe. Enquanto lia a história de Kawabata, logo me lembrei de dois esconderijos, bem menos românticos, que eu mesmo elegi em minha infância. Na casa de meus pais em Teresópolis, havia um banheiro de reserva, isolado, entre abacateiros e pereiras, nos fundos do jardim. Uma escada de madeira, bamba e roída, estava sempre encostada a ele, dando acesso à caixa d’água no topo. Aos sete ou oito anos de idade, aprendi que, subindo essa escada, e me escondendo atrás do reservatório, eu ficava fora da vista de meus pais e de meus irmãos e podia ali, do meu jeito torto, no alto de uma torre instável e feia, simplesmente viver.

Nos fins de tarde, em pleno crepúsculo, eu tinha um segundo esconderijo, mais devassado: ao lado da casa, havia um gramado solitário, em forma triangular e cercado por limoeiros, onde ninguém aparecia; um lugar pelo qual ninguém se interessava, mas onde eu me recolhia para esperar a noite e sorver, mais uma vez, agora longe do sol, o gozo da solidão. Não fiz nada de especial em nenhum dos dois lugares: não escrevi um livro e nem tive ideias brilhantes, embora atrás da caixa d’água eu tenha relido, por várias vezes, o Robinson Crusoe, de Defoe, e, em um caderno escolar, em meio ao crepúsculo, tenha escrito meus primeiros e deploráveis poemas de menino, que depois perdi para sempre. Nada comparável, portanto, à torre de Montaigne e à escrita de seus Ensaios, mas, ainda assim, um lugar secreto — como o do menino Keisuke, no conto de Kawabata — onde eu aprendi que era possível ser Um, e não só “mais um” em um longo séquito de fantasmas familiares.

Volto ao relato de Yasunami Kawabata que, devo registrar, é um de meus escritores favoritos. Os motivos do menino, como já disse, foram bastante circunstanciais. “O papai e a mamãe tiveram uma briga terrível, e a mamãe disse que ia embora para a casa dos vovós me levanto junto”. A ameaça de ser arrancado do lugar de príncipe do casal, o terror de uma paixão de origem que se desfazia, o pânico diante do real, foram motivos suficientes, mais do que suficientes, para Keisuke planejar sua fuga para o alto. Para o alto, bem alto, em um lugar onde ninguém mais o ameaçasse com decisões violentas e onde ele pudesse, enfim, se dedicar a ser. Na verdade, uma fuga para dentro — o alto, ou o baixo, sendo apenas uma circunstância banal.

Desde então, a menina Michiko passou a levar para o topo da árvore também seus livros de escola, e os dois iniciaram, quase sem saber, um namoro delicado, regido pela fuga e pelo fogo da escrita. “Havia dias em que os passarinhos vinham, ou ventos passavam farfalhando as folhas”, descreve Kawabata. Para concluir: “Não era muito alto, mas os pequenos namorados sentiam que estavam num mundo completamente desligado da terra”. Essa separação, esse desligamento, só através deles é possível chegar a si. Só através deles, alguém — um menino, uma menina, um escritor, um homem qualquer — emerge de dentro de si e se afirma no mundo. Tudo muito diferente de nossos tempos convulsos, em que todos nos enroscamos e nos movemos sempre em espiral, sem sair do lugar, em uma agitação inútil porque infértil.

Esse retorno ao primitivo, e ao primordial, já aparece, muitas páginas antes, no conto Oração em língua materna. Kawabata começa narrando o caso de certo doutor Scandila, um italiano que foi professor de italiano, francês e inglês e que contraiu a febre amarela. No dia em que adoeceu, ele falou só em inglês. “Depois, na fase progressiva da doença, falou em francês; e, no dia em que morreu, só falou italiano, sua língua materna.” Como delirava a maior parte do tempo, Scandila não estava em condições de escolher conscientemente cada uma dessas línguas. Alguma coisa o levou a refazer o percurso de sua vida da frente para trás, até chegar a si mesmo e a sua origem italiana.

“Estes exemplos são relativos à língua. Mas o que representam esses estranhos fatos?” Os psicólogos talvez os explicassem como “uma anormalidade da memória”. Pergunta-se Kawabata: “Orar em língua materna não seria uma prova de que as pessoas, amarradas pelas cordas de antigas tradições a ponto de ficarem sufocadas, em vez de tentarem se libertar da amarra, vivem se apojando nessa corda?”. Talvez possamos chamar de raízes o que o escritor japonês chama, aqui, de “tradições”. Como o menino que se refugia no alto da árvore para se agarrar melhor a si mesmo, todos buscamos um ponto fixo desde o qual observar o mundo e, enfim, respirar.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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