A danação maior do escritor: a expressividade

A luta permanente em busca de todas as possibilidades para as palavras na construção do texto
Osman Lins referia-se à imensa responsabilidade do ato de escrever como uma “guerra sem testemunha”
01/09/2020

O ficcionista não se importa só com a gramática. Mas sobretudo com a força expressiva da linguagem e a adesão desta ao universo do personagem. Se importa, além disso, com a robustez das palavras em sua frase e, em especial, com os sons, os ritmos que elas produzem, se se atraem, se batem umas nas outras. Além da colocação de palavras que tenham força semântica, que são únicas, que cabem perfeitamente no contexto, o ficcionista se ocupa muito com a música da frase. Ouve-lhe os sons, amplio-os no ouvido interno. É o exame final para saber se a frase ficará ou não no texto. Osman Lins, grande escritor, referia-se à solidão e à imensa responsabilidade do ato de escrever como uma “guerra sem testemunha”. Parece ser verdade que o escritor verdadeiro aqui e ali se encontra nessa situação secreta de não ter com quem dividir uma questão de expressividade da sua frase — mas a dúvida que o assalta, antes de ser gramatical, é de expressividade mesmo. E é isto que o torna escritor — é essa danação diária, permanente, de buscar para as suas palavras todas as possibilidades expressivas delas. Sei de um escritor que, certa vez, se bateu com o verbo “lembrar”. Todos sabem que é um verbo bitransitivo. Sendo assim, me dizia o escritor, tal verbo permite construções como estas: “Lembrou-o da conversa que tiveram anteriormente” ou “Lembrou-lhe a conversa que tiveram anteriormente”. Bom, isto é o que reza a gramática e não é difícil saber a regra. Mas para o ouvido do escritor, por uma questão de estilística, de uso adequado da linguagem que ele, escritor, deseja, duas simples construções dessas podem, no secreto da sua escrita solitária, causar perturbação, empatá-lo de prosseguir no trabalho com o texto. Foi justamente o verbo “lembrar” que encasquetou o escritor a que me referi — e ele ficou batendo com as duas construções acima indicadas em seus ouvidos: “Lembrou-lhe a conversa…” ou “Lembrou-o da conversa”?; “Lembrou-lhe a conversa…” ou “Lembrou-o da conversa”?; “Lembrou-lhe a conversa…” ou “Lembrou-o da conversa”?… Ufa! Qual das duas expressões é mais ou menos musical? Qual delas soa melhor na frase? — eram as perguntas do escritor. É essa a língua do escritor, a sua danação maior — a dúvida permanente com a sua linguagem. O gosto pelas palavras e os sons que calem mais apropriadamente em sua alma.

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

Rascunho