🔓 Verões eternos

A luz que risca o tapete da sala é a mesma que riscava o tapete na infância e se espraia em pura nostalgia
Ilustração: João Verderame
05/02/2023

Talvez nunca como agora eu me sinta tão bem por viver em uma cidade quente. Sim, houve tempos em que praguejei o que chamava com raiva de verões eternos, sonhando com um frio de montanha com chocolate e vinho. Mas já me perdoei pelo que não sabia de mim: o que mais me movimenta é o sol e o calorão. Especialmente o sol que anuncia a estação — aquela luz que risca o tapete da sala é a mesma que riscava o tapete da minha infância, dizendo que naquele fim de semana daria praia.

No Rio existe uma luz especial anunciativa do verão. É uma luz com cheiro e consistência, não é como em outros lugares quentes ou abafados. Quando o verão está próximo, entre um colapso ou outro da temperatura que ainda insiste em declinar — algo em torno de 20 graus é frio para os cariocas — há uma nova organização cósmica dos dias. É o prenúncio de um tempo que não deveria acabar nunca; os verões deveriam ser eternos, e agora a minha raiva de antes contra o calorão se diluiu em pura nostalgia. Já estou com saudade da estação que ainda não acabou. Sonho com o dia em que aquela primeira luz irá riscar meu tapete de novo.

Moro em uma cidade onde as pessoas chegam para tirar férias. Meu quintal é cheio de mares e praias. Em alguns minutos estou onde muita gente demora horas de avião para alcançar. Isso é o maior luxo que a vida pode me oferecer, com todos os problemas que a cidade obviamente tem, mas que não se referem somente ao Rio, vamos combinar que o Brasil anda mal há séculos.

Este ano o verão demorou a se firmar. Tivemos um inverno longo e chuvoso. Cheguei a pensar que não sentiria aquela sensação da luz riscando os dias que começam na sala. Mas por fim o verão chegou com força e, antes que termine, quero deixar registrado que a estação voltará, por mais incrédula que eu esteja em um novembro cinzento. Escrever que os dias quentes estarão de volta dentro de alguns meses me conforta. É o mesmo que dizer: não vamos perder nunca a esperança. Tudo passa. Ainda que os verões não sejam eternos, as tempestades e o frio também não são.

A cada verão, eu instituo novos rituais pela cidade, que incluem passeios simples como ir até a Praia Vermelha tomar uma água de coco. Me lembro de que quando eu morava em Amsterdã, um dia falei com um professor meu sobre minha saudade de beber água de coco. Ele respondeu torcendo o nariz, como se o dentro do coco fosse algo sujo, como as águas as nossas praias… Na hora não tive outra reação a não ser dizer uma bobagem qualquer como “você não sabe o que está perdendo” ou algo assim. Mas deveria ter dito que a água do coco é mais limpa do que a água mineral. Enfim, problema de quem não mora nas férias, decidi não me sentir magoada porque o gringo resolveu atacar meu coco.

Gostar do verão é muito mais amplo do que simplesmente gostar de calor. Quando se está sob sol há muito mais coisas a se fazer de graça do que no frio. Vou escrever um diário de verão e enviar para aquele professor lá de longe.

Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

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