El Supremo (2)

É ou não possível verter a realidade em palavras; e as palavras em texto fidedigno?
Augusto Roa Bastos, autor de “Yo el supremo”
01/02/2023

Continuo, nesta coluna, a série de reflexões que iniciei mês passado sobre o romance Yo el supremo, do paraguaio Augusto Roa Bastos. Vou me ater, como na primeira sessão, aos trechos que mais inspiram reflexões sobre a tradução.

De fato, o romance todo assenta sobre profundas questões tradutórias: é ou não possível verter a realidade em palavras; e as palavras em texto fidedigno? Essa tensão perpassa todo o livro de Roa Bastos, manifestando-se em especial na dureza dos diálogos entre o ditador e seu amanuense.

O próprio ditador supremo assume que a tradução da realidade em palavras é inviável: “Os fatos não são narráveis; menos ainda podem sê-lo duas vezes, e muito menos ainda por distintas pessoas”. São bem visíveis os processos tradutórios que transparecem nessas travessias de fato a narrativa, de pessoa a pessoa.

Essa mesma condição é notada por Milagros Ezquerro, que editou o texto de Roa Bastos para publicação pela Ediciones Cátedra. Comenta ela que o romance paraguaio “inclui uma reflexão sobre si mesmo, sobre a escritura, sobre as condições de possibilidade de uma escritura romanesca”. Essa reflexão indica um processo de elaboração textual que se autoquestiona, como expressão do real, e que abarca em si o germe de múltiplas traduções — tanto as já presentes no texto quanto a perspectiva de futuras versões.

Para Ezquerro, é como se o compilador, personagem que figura como “autor” do texto, “estivesse situado entre dois espelhos paralelos que desdobrassem sua semelhança até o infinito”. A semelhança, aqui, é da obra consigo mesma — em suas diversas formas, de texto falado e escrito, de escritura construída com base em fontes e recortes variados. Assim, “o texto só pode ser duplo, dúplice, ambíguo, ambivalente, duvidoso porque é ao mesmo tempo imagem e espelho de outros textos anteriores/posteriores que convergem em sua contemporaneidade”. Numa dessas imagens da escritura que se projetam ao infinito, vê-se sua própria tradução — ou uma de suas possíveis traduções.

Outra característica da obra de Roa Bastos são as lacunas textuais que indica o próprio compilador, lacunas provocadas por trechos rasgados, queimados, ilegíveis, etc. Para Ezquerro, essas “falhas” denotam a parte oculta e inefável da escritura, justamente aquilo que o ditador queria expressar — sem consegui-lo — como a própria realidade, não meramente como palavras. Em suma, as lacunas poderiam indicar o espaço que caberia à “escritura absoluta, único instrumento do poder absoluto”. Nota-se ao mesmo tempo uma rendição à impossibilidade de traduzir a realidade em texto e um contínuo e supremo esforço por superá-la — por meio de uma tradução verdadeiramente plena e fiel, que exigiria, na prática, uma nova linguagem.

Yo el supremo também se singulariza pela infusão do guarani no espanhol. Essa infusão se faz não apenas pelo uso de palavras de origem guarani, mas, em especial, segundo Ezquerro, pela inserção de peculiaridades da língua indígena, como o uso de palavras aglutinadas — elemento estranho ao castelhano. Esse artifício dá sabor especial ao texto, com notas de estranhamento, mas também remete a outro tipo de tradução que perpassa a obra: a interpretação do espírito popular, que se expressa pelo idioma dos povos originários.

Para completar o cenário de múltiplas traduções, importa apontar que a obra de Roa Bastos, e agora não apenas Yo el supremo, se alicerça no exercício da variação e da reinvenção. A obra, mesmo depois de publicada, nunca está terminada, e sempre merecerá uma nova revisão. Para o autor paraguaio, a última versão deveria ser, “dando a volta completa ao círculo, a negação da primeira”. Vê-se, na negação do original, a necessidade de sua constante tradução.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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