Uma rua chamada pecado

Uma igreja evangélica, dois prostíbulos e uma academia de ginástica transformam o pequeno pedaço de chão em uma víbora pronta para abocanhar os mais incautos
Ilustração: FP Rodrigues
01/02/2023

Minha rua lambe os cascos do demônio e a coroa de Cristo. Equilibra-se na sutileza de uma vida entre o rural e o urbano. Desde que abandonei C. — impelido por um câncer, uma separação e um traficante de drogas —, este pequeno pedaço de chão, com pouco mais de um quilômetro, transforma-se em uma víbora pronta para abocanhar os mais incautos. A metamorfose deu-se com relativa rapidez. Antes, somente casas e uma oficina mecânica pintavam um cenário um tanto bucólico nas proximidades da rodovia apinhada de caminhões. O vasto terreno no final da rua, com um pasto indeciso entre crescer e morrer, ainda abriga três cavalos. A rede de esgoto chegou há algum tempo. E também as putas e Deus.

Passo todos os dias por ali. Ao me livrar do carro, sou um andarilho por esta cidade suja, arrogante e feia. É comum encontrá-las em animadas conversas diante do puteiro, em cuja placa um óbvio nome em inglês tenta disfarçar as entranhas da vida devassa e, possivelmente, triste e divertida em semelhantes proporções. Tomam chimarrão ou cerveja sob o olhar atento de um cão — arremedo de pastor alemão perdido por estas encostas do mundo. Evito pensar em Cérbero: seria analogia excessiva. Algumas são jovens; outras atravessam a metade da vida. Usam, em geral, roupas de pouco tecido, expõem o contorno dos corpos tatuados em busca da sobrevivência. Estampam uma felicidade artificial, de sorriso exagerado. É comum o cumprimento um tanto envergonhado. Um leve meneio de cabeça, um balançar de mão. Sabem que nunca atravessarei o pórtico das labaredas de suas carnes à espera de algum conforto.

Deus é um sujeito barulhento. Gritam de olhos fechados, as mãos espalmadas ao céu de cimento e luzes esbranquiçadas. Os dedos tentam, talvez em vão, roçar a barba divina. Não entendo por que rezam em volume altíssimo, se Deus é ubíquo e está entre eles, satisfeito com a prole. Ou não? O cicio seria mais que suficiente. Talvez queiram deixar evidente de que lado da trincheira estão: ao lado do bem contra o mal que assola o mundo, que destroça famílias, que destrói lares, que leva a humanidade ao ralo das desgraças mundanas. Temo, com um crescente pessimismo, que minha rua se transforme numa terra de batalhas sagradas, numa inquisição anacrônica. Que as labaredas bruxuleantes tinjam de cinza o meio-fio.

É uma igreja pequena, mas deseja abarcar o universo — conforme a placa que se  destaca na casa de vidros, cimento e gritos. Os homens trajam ternos, sempre a carregar uma Bíblia; as mulheres usam vestidos ou saias e têm os cabelos longos, longuíssimos — Rapunzel, da janela da biblioteca infantil de M., minha filha,  olha-as com inveja e maledicência. Sempre que as vejo, com cabelos exagerados (pelo menos para meu gosto minimalista), vislumbro a dificuldade de lavá-los, suados, desgrenhados após o sexo animalesco com o parceiro enfurecido em busca da paz celestial. Sim, sou um tanto devasso na fé, no amor e no olhar sobre os demais.

Nunca entendi a vestimenta masculina para a conversa íntima com Deus (neste caso, não tão íntima, pois a escuto com facilidade). Por que a elegância do terno, se Deus é pelos pobres, desvalidos, desgraçados? É como se o pé de milho se disfarçasse de corvo para tripudiar o espantalho. Talvez a sola dos sapatos esconda um furo que irradie a luz em direção ao paraíso.

Mas Deus está ali, de braços abertos, entre minha casa e o puteiro. Ou melhor, os puteiros. Há poucos dias, e isso parece grande ironia, uma nova casa da luz vermelha (sim, colocaram uma brilhante luz vermelha na porta) abriu exatamente ao lado do puteiro originário, desbravador de corpos. E, para competir de igual para igual, a placa também estampa um óbvio nome em inglês. De espeluncas a prostíbulos, somos uma pátria estrangeira. Este não tem tanta graça: além de ser pretensamente mais moderno, um arremedo de bom gosto, nunca vi nenhuma das moças em conversas descontraídas na porta. Mas há também um vira-lata, um minguado guapeca, a vigiar os pecados cotidianos.

Durante muito tempo desejei ter um deck na frente de casa. Agora, as tábuas enfileiradas escondem baratas, aranhas e outros insetos. No fim de tarde, após o dia de trabalho, abanco-me armado de café e livro para o merecido descanso. Em frente, o terreno baldio e os pinheiros desenham um melancólico horizonte — um quadro rural de Hopper. A paz da leitura é, muitas vezes, quebrada pelo tropel ensandecido da chusma. O barulho aumenta, o chão treme, o vozerio espanta os passarinhos dos pinheiros e dos fios de luz. A manada de gnus famintos arrasta tudo por onde passa.

São peitos a estourar a atmosfera, gigantes, redondos, apetitosos. Bundas saltam dos shorts mínimos. Bíceps torneados a bronze. Coxas de Hércules. Peitorais de Aquiles. O Olimpo desfila pela minha rua. Homens e mulheres de proporções descomunais saem em disparada da academia de crossfit – um emaranhado de cordas, pneus, gritos e suores – há poucos metros de casa, próximo à igreja de orações de decibéis universais. Uma pantera feroz estampa a placa. Não há Deus, luz vermelha, mas o pecado parece habitar os halteres entre um urro ancestral e outro. A busca pela frugal eternidade também povoa esta animada rua onde habito.

O estranho encontro dos corpos acabou acontecendo. Nem me espantei. Diante da igreja, ela passou em direção ao mercado, possivelmente. Eu a conheço: tatuagens volumosas nos braços, cabelo escorrido na testa, andar insinuante. Está sempre diante da placa em inglês, ladeada pelo falso pastor alemão, a conversar alegremente com as companheiras de profissão. Me parece uma mulher tímida – o que, obviamente, deve ser um engano.

Na sincronia do paraíso e talvez do purgatório, o encontro: diante da igreja, os fiéis atravessam a rua para mais um culto gritante. A puta indiferente rebola as carnes com ainda mais devassidão. Eu, sem temer uma batalha, apenas observo. De repente, a turba de corpos de mármore desponta na saída da academia em direção ao final da rua. Todos ao mesmo tempo no mesmo espaço: corpos definidos, corpos tatuados, corpos escondidos em ternos desconjuntados e cabelos longuíssimos, corpos sagrados. A Bíblia estrangulada no sovaco. Deus e o demônio a provocar-se na luz pálida do sábado à tarde. Todos se ignoram. Talvez nem notem a presença uns dos outros.

Alheios ao meu olhar, correm, trepam e rezam em direção ao juízo final. Amém.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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