Há poucos dias fui ao lançamento de um livro num bar próximo a minha casa. Como era de se esperar, após dois anos de confinamento, as mesas estavam quase todas ocupadas. Já da porta de entrada, viam-se os bebedores profissionais e os amadores, casualmente espalhados, para não ofender os brios de ninguém. As pessoas falavam alto, sorriam, abraçavam-se, beijavam-se e os garçons corriam para atender aos pedidos de cerveja e petiscos.
Entrei, comprei meu exemplar, peguei o autógrafo, sorri para a foto, cumprimentei o autor e fui me sentar numa roda de amigos. Para nossa sorte, não havia música, o que tornava possível ouvir e entender os demais sem recorrer ao auxílio de libras nem megafone.
Embora estivesse me divertindo como há muito não fazia, não me demorei mais do que duas horas na farra, pois era meio de semana e o trabalho me esperava cedo na manhã do outro dia.
Eis que, menos de doze horas depois, o danado do Paulo Bono publica uma foto da turma em flagrante delito, acrescentando a seguinte legenda no topo: “nem toda mesa de escritor precisa ser chata!”. Eu ri. Mas não satisfeito com a sem-vergonhice da provocação, ainda a compartilhei. Só mais tarde fui me questionar sobre o assunto.
Será que esse continua sendo um senso comum hoje? Será que as pessoas ainda acreditam na visão inspirada por Dom Quixote, em que o interesse por letras leva a um alheamento do mundo concreto, como se as duas coisas fossem antagônicas e inconciliáveis? Ou, então, que a posse aprofundada de um determinado saber impeça uma fluida transmissão de parte desse conhecimento para leigos? Que a imagem predominante dos escritores varie do arrogante pernóstico para o simpático vaidoso autorreferente? Que suas conversas sejam recheadas de bordões e clichês e levem seus ouvintes a querer dormir?
A Primavera deste ano trouxe mais do que a exuberância do verde e o colorido de girassóis, azáleas, brincos-de-princesa e crisântemos. Com ela, veio uma gama de eventos literários represados pelas recomendações sanitárias e pela adoção de políticas públicas contrárias à fomentação de cultura. São bienais, feiras, festas e baladas realizadas presencial e virtualmente em diversas cidades e estados do país. E, evidentemente, muita gente falando ao mesmo tempo.
Do que pude acompanhar, tanto quanto convidado palestrante quanto espectador, é que hoje existe maior diversidade de temas e trânsito de autores com distintas faixas etárias, gêneros, cores, orientações sexuais e origens geográficas.
Essa pluralidade, acredito eu, é muito saudável para o ambiente literário, pois permite que novas percepções de vida e expressões artísticas problematizem e revigorem o velho modelo conhecido, repercutindo positivamente na maneira do público leitor enxergar a literatura. Todavia, sou obrigado a dizer, ela sozinha não basta. Nunca estaremos totalmente livres da aparição dos fantasmas do senso comum de que falamos antes.
Há sempre o risco da cooptação da vaidade, da tentação de adesão cega a modismos ou o flerte com uma retórica vazia que iguala e nivela antigos e recentes chatos.
Mas do que falaram os escritores retratados por Bono em sua publicação? Falaram um tico de trabalho, alguém confessou uma paixão reprimida por uma atriz (o que não surpreendeu a ninguém do grupo), comentaram a respeito do acabamento do livro lançado e outras pequeninas coisas. Não necessariamente nessa ordem. Contudo, o assunto principal foi o futebol.
Com entusiasmo e emoção, lembraram-se de nomes de jogadores ignorados pela grande imprensa, narraram embates épicos de times locais contra “grandes”, partidas das séries A, B e C, jogadas inacreditáveis de craques imortalizados, atuações grotescas de juízes dentro e fora dos campos do Brasil, a classe de determinado ponta de lança, a força e a brutalidade de muitos marcadores da defesa, as injustiças não admitidas e as glórias negadas.
Em resumo, evocaram cenas sublimes e trágicas. E tudo isso apenas para derrubar o equívoco de mais um senso comum: o mito de que a vida interior não se afina com os esportes.