🔓 Umas cartas

As muitas histórias contidas nas correspondências enviadas ou apenas escritas para serem guardadas na memória
Ilustração: Juliano Soares
08/11/2022

De vez em quando, professores da escola básica inventam projetos em que estudantes trocam cartas entre si ou com outros, de outras escolas, em alguns casos até enviando pelos Correios. É como se fosse uma visitinha à máquina do tempo, em especial para essa moçada que só conhece aplicativo de celular. Minha prima mandou cartas aos sobrinhos que moram em outro estado. As crianças não sabiam. Receberam os envelopes como surpresas, inclusive uns mais atrasados que outros, ainda que tenham sido postados juntos. Aprenderam que a emoção faz parte. Leram e talvez tenham gostado da ideia de responder à mesma maneira. Pode ser que tenham agradecido por meio de mensagens instantâneas muito mais resumidas. Aos dezoito ou dezenove anos, eu ainda trocava cartas com um amigo do ensino médio. Embora tivéssemos telefone e outras formas de contato, sustentávamos uma espécie de conversa paralela, em outro ritmo e com outro tom, por meio de cartas cuidadosamente escritas e depois enviadas pelos Correios. Dava trabalho, era um cultivo, e mesmo quando nos encontrávamos pessoalmente, deixávamos o assunto tratado nas cartas apenas para elas. Não deixávamos o timing presencial interferir no espaçotempo do lado de lá. Às vezes, escrevíamos em papéis de carta, aqueles especiais, bonitos; outras vezes, rasgávamos folhas de cadernos pautados, enviávamos colagens e recortes de jornais, fotos, convites, adesivos, carimbos. Toda uma sorte de recursos do mesmo timbre ia junto com nossos envelopes de bordas listradas.

Há alguns anos, fui pesquisar histórias de escritoras por meio de cartas. A troca de correspondências entre elas e outros era uma espécie de mundo preservado, salvaguardado por uma universidade, onde ainda é possível pensar e examinar com calma. Naquelas cartas manchadas, amareladas, escritas à tinta, rasuradas, às vezes em finos papéis timbrados, outras vezes precárias como as minhas, arrancadas de blocos ou dobradas com cuidado, era possível encontrar ainda o dia a dia, as tristezas, as disputas, também as alegrias, os amores, o nascimento dos filhos, as fofocas, as brigas políticas, os combinados, as viagens, as críticas e os elogios entre todos, entre elas, relativos a pessoas que não estavam na conversa. Eu, intrusa, enfiava minha cara curiosa na janela, como se aquelas cartas me dessem uma fresta quase proibida por onde eu lia e ouvia umas vozes, pegava uns assuntos no ar, fazia conexões e montava quebra-cabeças.

As cartas não me pareciam vivas, assim como suas autoras, também mortas, mas eram como um sopro em meus ouvidos, tanto tempo depois. Um privilégio eu tinha: podia cotejar as cartas e as biografias, remontando peças soltas que a história teimava em tentar recontar. Todos os dias, ao chegar ao arquivo, eu agradecia àquelas escritoras por terem enviado cartas umas às outras, por terem tornado suas conversas uma espécie de legado que me permitia viver meio assombrada por elas, mas também guardiã de seus assuntos, uma amiga fugidia, anacrônica, que chegou atrasada para um papo que só acontece na minha cabeça.

Às vezes escrevo cartas travestidas de e-mails. Se ficarem atentas, as pessoas que as recebem perceberão que não se trata de mensagens quaisquer. Há nelas uma cadência atravessada pelos dias, pela vida, pelos afetos e pelas palavras que duram mais. Também às vezes escrevo cartas imaginárias. Elas ficam na minha cabeça, especialmente enquanto tomo banho ou em qualquer situação em que seja possível estar só e sem interrupções. Não são cartas fragmentárias, nem blogs, não têm post scriptum e nem querem ter. São cartas que eu gostaria de escrever a algumas pessoas, mas jamais poderei ou terei oportunidade disso. São cartas fictícias, cartas que não podem existir, cartas que servem, talvez, apenas para desobstruir canais, deixar que ideias e pensamentos fluam, assim como sentimentos e soluções. Escrevo cartas mentalmente, às vezes, se for no banho, falo baixo um texto que começa com um vocativo e segue com meus segredos, coisas que provavelmente jamais poderei dizer, mas gostaria. Algumas vezes choro ao “ler” essas coisas, porque elas desanuviam, expurgam, depois somem com o vapor no espelho. Uma carta ao meu pai, que jamais lerei no dia do seu enterro; uma carta à minha tia já falecida, carta póstuma, atrasadíssima; uma carta ao meu filho, que não precisa conhecer a mãe com tanto detalhe; uma carta a mim mesma, de envio impossível, me dando dicas sobre o que não fazer quando eu tinha vinte e poucos anos, uma carta também a mim no futuro, fazendo perguntas que talvez eu tenha tempo de encontrar respondidas numa gaveta entreaberta. Hoje eu quis escrever uma carta ao meu país. Não sei se ele a leria, já que não tenho me sentido cuidada nem como professora, nem como cidadã, nem como pessoa que quer se aposentar com dignidade, ou mais que isso. Quando dizem dignidade… desconfio muito do que virá. Por ora, vou pensar numa carta sem tinta, sem papel, que se evapore com a água do banho, mas consiga desobstruir sensações e esperanças.

Ana Elisa Ribeiro

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1975. É autora de livros de poesia, conto e crônica, infantis e juvenis, tendo estreado com um volume de poemas em 1997. Teve colunas fixas em algumas revistas desde 2003 e publicou quatro livros de crônicas reunidas: Chicletes, Lambidinha & outras crônicas (Escribas, 2012), Meus segredos com Capitu (Escribas, 2013, semifinalista Portugal Telecom), Doida pra escrever (Moinhos, 2021) e Nossa língua & outras encrencas (Parábola, 2023). É professora da rede federal de ensino e pesquisadora das mulheres na edição.

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