O que há num nome?

"Lumes", da premiada poeta portuguesa Ana Luísa Amaral, acende questões sobre a vida, a poesia, o corpo e os nomes
Ana Luísa Amaral, autora de “Lumes”
01/10/2022

Preciso terminar minha dissertação. Fazer uma pesquisa para um texto encomendado. Tenho de organizar minha vida financeira para o resto do ano. Falta pensar se publico um livro de poemas por agora ou não. As aulas de criação literária que marquei para os próximos meses estão por fazer. Mas há esse trabalho que se impõe, todo meu e o mais inadiável, uma mudança, digamos, de espaço, às custas de arrastar muitos (vamos chamar assim) móveis e ajuntar infinitos (vamos supor que se tratem de) objetinhos, que eu já nem lembrava ou sabia da existência. Fazer uma mudança dá muito trabalho.

Desocupar um apartamento é uma metáfora que funciona para a tarefa do luto. Quando se termina um namoro, por exemplo, ou quando alguém morre, começa uma movimentação árdua para rearranjar memórias, rituais, cardápios, lugares frequentados, costumes etc. Enquanto eu vinha fazendo esse trabalho de mudança, também lia Lumes da poeta portuguesa Ana Luísa Amaral, com a sensação de que os poemas me colocavam para conviver com certos nomes, espaços, hábitos, coisas — em suma, com uma linguagem própria.

Enquanto lia Lumes, fico sabendo que Ana Luísa Amaral faleceu. Foi coincidência que meses antes o Rascunho tivesse me encomendado uma resenha sobre esse livro. Eu, que havia lido alguns de seus textos críticos, e passei a tê-la no radar de referências as quais devia retornar, ainda não lera os poemas, e fiquei animada de receber o livro de poesia.

Ana Luísa Amaral nasceu em 5 de abril de 1956, em Lisboa. E faleceu no dia 5 de agosto de 2022, no Porto. Foi poeta, professora e tradutora. Autora de mais de trinta livros, entre poesia, teatro, literatura infantil, ficção e crítica. A Iluminuras editou quatro livros da autora, sendo três de poemas, Vozes (2013), Escuro (2015), e Lumes (2021) e um romance, Ara (2015).

A publicação de Lumes no Brasil aconteceu mais ou menos na mesma época em que a poeta recebia o prêmio Rainha Sofia de Poesia Ibero-americana, em 2021. O poema que abre essa publicação é What’s in a name, referido no texto da quarta capa, identificando a citação a Romeu e Julieta: “Logo no começo do segundo ato da peça de Shakespeare, Julieta pergunta a Romeu por que ele não pode renunciar a seu nome, para que ela possa amá-lo. Por que um nome é tão importante, a ponto de impedir o amor dos seres? ‘What’s in a name’, a frase literal da personagem, é o ponto de partida e o título original deste Lumes, que a multipremiada poeta portuguesa Ana Luísa Amaral traz agora ao Brasil, em edição consideravelmente aumentada, com poemas inéditos”.

O poema é este:

pergunto: o que há num nome?

De que espessura é feito se atendido,
que guerras o amparam,
paralelas?

Linhagens, chãos servis,
raças domadas por algumas sílabas,
alicerces da história nas leis que se forjaram
a fogo e labareda?

Extirpado o nome, ficará o amor,
ficarás tu e eu — mesmo na morte,
mesmo que em mito só

E mesmo o mito (escuta!),
a nossa história breve
que alguns lerão como matéria inerte,
ficará para o sempre do humano

E outros
o hão de sempre recolher,
quando o seu século dele carecer

E, meu amor, força maior de mim,
seremos para eles como a rosa —

Não, como o seu perfume:

ingovernado livre

Ana Luísa coloca no chão do texto uma estrada, palmilhada desde longe por guerras, linhagens, fogo e labareda. Uma história, ou uma trama, se convertida na fala de Julieta, que tenta responder à pergunta que abre o poema: o que há num nome? Nessa tentativa, o poema aponta para si mesmo como matéria inerte, mas também como aquilo que, tal qual a rosa, contém o ingovernado e livre perfume, que vai além do próprio corpo da rosa.

Frágil e poderosa
O que nos leva a seu ensaio Do sublime ao precário: tempos, corpo e poesia, em que Ana Luísa Amaral escreve: “A poesia é simultaneamente frágil e poderosa. E é pela sua condição artística de precariedade, a nós todos comum, que ela renascerá sempre”. Ela defende a poesia como aquilo que escapa aos limites, ainda que imaginários, do corpo e do tempo — imaginários, já que tudo que existe tem uma via de contato com o que está mais além de si. O poema seria, portanto, uma matéria imaterial, pois “à medida que o poema vai crescendo, o ‘puro nada’ declara-se, afinal, como contendo o próprio poeta, transmutado num ‘mim’ lírico, a sua comunidade e traços de desmesura nela, o seu tempo, o amor. Em suma, os versos de ‘puro nada’ falam, afinal, do mundo; e o ‘puro nada’ não é tão nada, nem é tão puro assim, porque é mundo”.

Tornemos, então, a What’s in a name. O poema contém uma questão perseguida pela poeta: quais são os limites e relações possíveis entre corpo, tempo e poema?

Falar ou ler o nome da flor, “rosa”, faz saltar para perto de nós, mais que a rosa, o seu perfume ingovernado, livre. Portanto, um nome é não só aquilo que sepulta mas também o que possibilita relançar adiante: “Lápide e versão, indistintamente”, tal como escreve Fiama Hasse Pais Brandão. E o poema faz com que os nomes convivam, empreendendo uma linguagem.

O trabalho do luto é, em algum sentido, também um esforço de convívio — com algo que já não existe. Ele produz, por meio do rearranjo dos nomes que se ligavam àquela realidade pré-existente, deslocamentos. Ou seja, dá ao que morreu a possibilidade, enfim, de encontrar sua correspondência atualizada em nós, se tornar outra coisa. O trabalho do luto é, em alguma medida, ir aos nomes — aos móveis e objetinhos do início do texto, por exemplo — e movê-los de lugar, rearranjar suas funções. O que há num nome? Um rosto, um móvel, uma cebola, uma mulher que se sente sozinha em um café, uma formiga morta com a unha, um livro abandonado no banco, uma filha.

Todas estas coisas, esses nomes, movendo-se epigraficamente, convivem nos poemas de Ana Luísa Amaral, como se despertassem por um instante para em seguida mergulhar sua forma novamente em silêncio. Por que a poeta fala tanto em nomes? O fim do poema Coisas nos oferta uma resposta: “Por isso, e mesmo assim, de nomes falo:/ porque não sou capaz/ de melhor forma:”. E silêncio.

Lumes
Ana Luísa Amaral
Iluminuras
112 págs.
Ana Luísa Amaral
Nasceu em Lisboa (Portugal), em 1956. Poeta, tradutora e professora, publicou mais de 30 livros, entre poesia, crítica, literatura infantil, teatro e ficção. Morreu em 5 de agosto de 2022, no Porto.
Ana Luiza Rigueto

É poeta, jornalista e especialista em literatura brasileira. Atualmente, é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da UFRJ, com pesquisa em poesia contemporânea. Publicou Entrega em domicílio (Urutau, 2019) e tem poemas em diversas revistas online.

Rascunho