🔓 Um tubarão radiativo

Na era da supremacia das redes sociais, a busca pelo isolamento e contemplação tornou-se um grande desafio ao artista
Ilustração: Marcelo Frazão
28/08/2022

Até poucas décadas atrás, antes de começarem a escrita de um novo livro, era quase ritual o hábito que os escritores, particularmente os romancistas, tinham de se isolarem de tudo que lhes representasse badalação, agito ou perda de energia. O propósito era atingir um grau de comprometimento criativo, capacidade de concentração e verdadeira entrega.

Se entre os célebres, existem casos extremos como os de Salinger, Herberto Helder e Dalton Trevisan, que fizeram da reclusão absoluta uma marca identitária, é igualmente famosa a história de que Balzac, com objetivo de livrar-se das tentações da vida boêmia, mandou construir um quarto inteiramente à prova de som, numa casa localizada nos arredores de Paris, fazendo dela também esconderijo para evitar seus inúmeros credores.

Jorge Amado, por sua vez, embora exibisse uma personalidade bastante sociável, quando pretendia iniciar um novo projeto, frequentemente recorria aos amigos mais íntimos para hospedar-se em casas de verão e fazendas distantes de Salvador. Já Leonard Cohen, assim que decidiu escrever seu primeiro romance, abandonou os Estados Unidos e se recolheu numa pequena ilha da Grécia. Outro bom exemplo é o de Hilda Hilst. No auge dos seus trinta e seis anos de idade, mudou-se de São Paulo para o sítio Casa do Sol, perto de Campinas, e lá permaneceu até o fim da vida.

Penso que na era da supremacia das redes sociais a busca pelo isolamento e contemplação tornou-se um grande desafio ao artista. O trabalho de divulgação, promoção e publicidade que no passado era de responsabilidade principal das editoras transferiu-se quase integralmente para a parte mais fraca da corda: o autor. É preciso ser ou se tornar popular em tempo integral. O fantasma do esquecimento ronda os silenciosos e apavora os discretos. E dá-lhe postagem rasa no Facebook e foto de rosto no Instagram.

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Foi como completo desconhecido que Ivan Castilho chegou a mim.

Naquela altura eu não sabia que João Antônio, um dos maiores contistas de todos os tempos, louvara-lhe o talento e chegara mesmo a premiá-lo num concurso.

Isso ocorreu no princípio dos anos oitenta, a década mágica do rock na Bruzundanga, e serviu de estímulo para a inserção do autor, oito anos depois, na prestigiosa coleção que revelara Sérgio Blank, Bernadette Lyra e Waldo Motta.

Muito menos desconfiava que em o deus do trovão, esse seu primeiro e assustador urro sobre os telhados do mundo, já se anunciava o poder de síntese de sua prosa e o olhar inquiridor que esmiúça as glórias e os infortúnios das camadas menos privilegiadas de nossa sociedade, seus dramas mesquinhos, sua graça.

E nessa minha ignorância segui de férias para Guarapari, cidade onde me acostumara a assistir, nos verões de minha infância, à repetição de um estranho fenômeno: uma enxurrada de turistas enterrar-se na areia monazítica, enquanto eu tomava banho de mar e catava conchinhas. Quem me esclareceu o mistério foi meu pai. Eles vinham em busca de poderes radiativos. Acreditavam que a alta incidência de minerais pesados nas praias da região curava enfermidades e propiciava longevidade. Leitor aficionado de quadrinhos que era, logo imaginei a possibilidade de surgir na praia um super-herói igual ao Hulk ou o Homem-Aranha ou mesmo um vilão louco feito o Coringa.

Naquela altura das férias, eu não imaginava que fôssemos nos encontrar no bar e eu, já cheio de muitas cervejas, fosse me impressionar com suas tatuagens e pedisse para fotografá-lo. Era minha primeira vez no Bolero’s Bar, mas ao ver o letreiro da calçada me lembrei do Wilson Bueno, não resisti e entrei. Foi numa tarde de sábado, depois da chuva. Nos alto-falantes tocava Nina Simone, Cazuza, Creedence e Milton. A clientela era tão heterogênea quanto a música. Ele consentiu. Usei o filtro do Instagram e fiz uma P&B. Ele gostou tanto que mostrou para mulher. Ela gostou também. Num dado momento, falamos sobre novos e velhos deuses da literatura. Coisa rápida. Alguém torceu o nariz como se o assunto fosse proibido. Calamo-nos. Um conhecido de vista, talvez parente distante, me descobriu e, sem pedir permissão, me denunciou. “Ele é filho do Pesquisa. Mora em Salvador.” O bar flutuava. Um aquário em minha cabeça. Tudo rodava. O tubarão num canto. Sacando. Instintos alertas. Eu entusiasmado pedi a saideira. O tubarão só de bituca no movimento. Não fossem as tatuagens, passaria invisível. Até que parti.

A ignorância se desfez no dia seguinte. Eu aguardava para embarcar num avião de volta pra casa, quando li, no telefone, a mensagem do Saulo Ribeiro:

“Porra, onde você encontrou o Ivan?”

“Ivan?”

“É. O cara da foto. Das tatuagens. Há anos quero achar esse cara. Ele escreveu um livro que eu adoro e sempre quis publicar.”

Saulo queria seu contato. Até então, eu nem sequer sabia seu nome. Liguei pro meu pai e pedi ajuda. Pela descrição das tatuagens, ele identificou a pessoa, disse que conhecia a irmã, que o via sempre nos bares e falaram sobre futebol algumas vezes. No entanto, demonstrou-se surpreso com a informação de ele ser escritor.

Ivan Castilho não tem perfil no Twitter, Facebook ou Instagram e, pasmem, muito menos celular. Porém, escreve. Todos os dias.

Foi então que eu soube quanto o estrelismo, a vaidade chocha, o brilho ofuscante das telinhas e telonas, a banalização e a vulgarização das imagens são coisas avessas ao universo de Ivan, quando descobri também que a radiação da areia realmente era capaz de transformar um homem m um tubarão com capacidades espetaculares.

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E eu que, mesmo prestes a começar a redação de um romance, sempre reclamando da falta de tempo, não resisto a vez em quando espiar as linhas de tempo aleatórias dos amigos na internet, caçando aqui e ali um dito espirituoso, uma fagulha, me deparo com a repetição de velhas e novas fotos, tropeço em infindáveis anúncios comerciais e, como aceno tímido de esperança, me reconforto ao me lembrar da existência marinha perto de mim.

Lima Trindade

Nasceu em Brasília (DF), em 1966. É mestre em Letras pela Universidade Federal da Bahia. Publicou o romance As margens do paraíso (2019), a novelaO retrato ou um pouco de Henry James não faz mal a ninguém (2014) e o livro de contos Corações blues e serpentinas (2007), entre outros.

Rascunho