Nesses dias turvos de outono, quando o verde se afugenta não somente pelos desÃgnios próprios da estação, mas, principalmente, por submissão à ganância do interesse privado, torpemente acariciado pela complacência criminosa de nossas autoridades públicas, a saudade do verão me castiga. Principalmente a dos verões vividos no Porto da Barra, quando não raro, antes do banho de sol e mar, para alegria de crianças e adultos, eu me deparava com as esculturas em areia do famoso Antônio César, onde do chão brotavam carros coloridos, mulheres incrivelmente voluptuosas, imponentes castelos e, para nosso espanto, centauros.
Numa dessas ocasiões aconteceu do querido Marcelo Frazão, com sua larga experiência de professor de Belas Artes, explicar para minha amiga Emily e para mim a maneira mais rápida para se descobrir se um artista possuÃa talento para o figurativo, que era observando se ele sabia retratar bem mãos e pés. Se não o soubesse, esquecêssemos o restante, pois o pretenso artista não passaria de um charlatão deslavado.
Eu então, apoiado na balaustrada, desviava minha atenção, retida até aquele momento nos fartos seios e bundas das mulheres esculpidas, seus cabelos evanescentes, nas ancas dos seres mitológicos, metades bestas, metades homens, nas grossas colunas dos castelos medievais e nos carros que me lembravam o desenho do Speed Racer de minha infância, e feito juiz de um concurso inexistente pesava que notas eu daria às esculturas a partir das extremidades de seus braços e pernas, antes que a fúria do vento e do mar devastasse tudo.
O critério que Frazão tão generosamente compartilhou conosco, na praia, serve como ponto de partida para pensarmos a questão da harmonia estética de um trabalho figurativo. Ao exprimir o desafio de representação de determinadas partes do corpo humano, em nenhum momento o professor aludiu à ideia de fidelidade realista, à cópia exata de um modelo. O saber fazer bem, independentemente do ramo artÃstico em que se trabalhe, não prescinde das escolhas de estilo (lembremos de mestres tão distintos quanto Pablo Picasso, Tamara de Lempicka, Diego Rivera e Kazuo Iha). E mais: domÃnio técnico não tem cor, classe social, gênero nem orientação sexual. Embora o artesão, sim. Essas caracterÃsticas além de o definirem, influem em sua visão de mundo e sensibilidade e, muitas vezes, tornam-se o objeto maior de sua expressão. O perigo (ou armadilha) reside na possibilidade de o artista ter a qualidade de sua arte julgada a partir de sua cor, classe social, gênero ou orientação sexual. Seja para rebaixá-la, seja para elevá-la. É quando o trem sai dos trilhos.
Há ainda outras maneiras sutis de discriminar uma obra por razões estritamente pessoais. Em tempos de deus-mercado, por exemplo, muitas editoras avaliam autores por sua popularidade nas redes sociais, pelo número de seus seguidores e quantidade de likes em postagens. Quanto mais fofo (ou correto), melhor.
Eu, que sempre simpatizei com Nietzsche, sinto minha pele arder com a menção a Ãdolos. Não me vejo como adorador de nada. No decorrer de toda a minha vida, a designação fã é a que mais me agradou e até hoje agrada. O fã declara sua admiração pelo trabalho alheio, acompanha sua jornada e tem plena liberdade para discordar criticamente de uma realização ou outra e não gostar do caminho adotado. Não confunda o fã com um fanático, por favor. Fãs são exigentes e não dizem amém.
Esta crônica vai chegando ao seu fim e eu aproveito para dizer que todo esse palavrório é apenas um breve aquecimento para o texto que pretendo escrever em junho: contarei como conheci Renato Russo pessoalmente e também o fato de que nunca me incomodou os pés dele terem sido feitos de barro.