🔓 De volta à praça analógica

A compra de um vestido na infância é a busca da cronista por uma vida sem os excessos das redes sociais
Ilustração: Eduardo Mussi
01/05/2022

Entre as várias sequelas da pandemia, uma que só agora percebo é uma certa aversão às redes sociais. Não propriamente às páginas que divulgam trabalhos, das quais sou obrigada a participar, mas a rede social como exposição de rotinas e aquisições. Sei que é um pensamento tolo, que não vai afetar um milímetro na movimentação dos astros, mas é algo íntimo sobre o que eu gostaria de comentar.

Retorno à infância (analógica, claro) e estou de volta à grande loja de departamentos que ficava na Praia de Botafogo e que hoje é um shopping. Me sinto agora pré-analógica. Não me importo. É a minha história. Tenho lá meus 7 ou 8 anos e estou na loja de departamentos com meu pai à procura de um vestido. Era ele quem saía comigo nessa fase para comprar roupa. Meu irmão era pequeno, e os cuidados com ele deixavam a meu pai a tarefa de ir comigo, o que ele parecia gostar e eu certamente adorava.

Achei o vestido dos sonhos imediatamente. Estampado, de flores, meio laranja, tinha lastex nas mangas. O lastex analógico. Saí do provador com ele e não tirei mais. Fiquei rondando pela loja com minha compra, me escondendo pelas araras, como se a loja fosse um parquinho. Estava radiante até a hora em que, passando pela arara onde havia vários vestidos meus, de tamanhos diversos, uma garota dizia para a mãe:

— Olha que vestido horrível!

Ao que a mãe concordava:

— Nossa, horrível mesmo.

Elas não perceberam que eu estava ali e mesmo se percebessem não se importariam. Não há como saber. O fato é que meu pai presenciou a cena e, ao analisar a minha cara de tristeza momentânea, ou choque, porque meu vestido lindo deveria ser uma beleza universal, ele disse:

— O importante é que você gostou.

E ponto final. Aquela frase foi definidora — “o importante é que eu gostei”. Parece algo simples, mas dito naquela forma compreensiva e pedagógica, foi uma forma de direcionamento de mundo. Entendi ali que não era importante o que o outro achasse desde que eu estivesse me achando linda. Saí rodopiado pelo “parquinho” como se nada me tivesse alterado a rota da existência. Eu e meu vestido novo estávamos em um Sábado de Aleluia. Depois fomos tomar sorvete em uma praça para finalizar o dia analógico e também para que eu gastasse o resto da minha energia da tarde.

Penso na liberdade de viver em um mundo sem as algemas de uma rede social, que me induza a postar o que eu compro — também me refiro aos grupos de whatsapp — e tudo o que eu experimento, sejam viagens, sabores ou qualquer outra vivência “incrível”. Eu detestaria. A experiência de ter um vestido não gostado e de ver o olhar de reprovação de uma estranha diante de algo que eu tinha amado, foi muito importante. A pequena frustração, protegida pela fala do meu pai, me ajudou tanto, que não sei como funciona a cabeça de jovens diante do espanto do desagrado, de não ser perfeita em uma rede onde todos são tão impecáveis.

Foi tão bom crescer sem o império das redes. Hoje, quando passo as páginas virtuais no celular, em viagem ou em descanso, me sinto profundamente entediada por esse mundo. Não consigo imaginar, mesmo já tendo feito e superado essa fase, o prazer que existe em parar alguns segundos a experiência única que se vive apenas uma única vez e compartilhar socialmente, com o desespero de conferir quantas pessoas curtiram, de longe, a minha vivência.

Em contrapartida, gosto cada vez mais das páginas de paisagens, sem ninguém, sem aquisições materiais, apenas paisagens — pores de sol, montanhas, rios e árvores… Me transporto para estes cenários e imagino que a vida poderia ser bem mais leve e bonita se o overposting desse um tempo, e a humanidade aprendesse a respirar os momentos, a viver de verdade suas experiências e a partilhar com quem está perto ou ao lado.

Apenas isso já basta. Ou não?

Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

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