🔓 Pequenas crueldades

Um pontapé na infância ajuda a cronista a descobrir que os perversos estão por todos os lados, disfarçados ou não
Ilustração: Eduardo Mussi
03/04/2022

À medida que a gente envelhece, é comum que antigas lembranças reapareçam do nada. Então, o que a gente pensava que já havia superado ou enterrado no pó do esquecimento volta com força sobrenatural. Outro dia um acontecimento voltou em terceira dimensão e foi como se eu sentisse na pele novamente toda a dor. Eu tinha 10 anos e fui punida severamente pela menina de Ipanema por achar que o Mouse do Mickey se falava tal como se lê em português: mou-se.

Eu era uma das últimas a chegar em casa, quase de noite. A moça da condução depositava uns oito ou nove (como cabiam na velha Brasília eu nunca consegui entender) e eu ficava quase por último. Quase. Eu voltava ao lado da tal menina que me torturava pelos mais insignificantes motivos. Quando ela não me torturava com alguma provocação que tinha o objetivo claro de me humilhar, ela me ignorava e eu então era anulada inteiramente dentro daquele veículo.

Até que um dia ela encontrou uma forma ainda mais cruel de me atingir. Foi quando pronunciei a palavra maldita: mou-se. Ela estava exibindo alguma coisa que havia comprado nas férias em algum lugar incrível com sua família incrível, e eu, inocentemente, quis me intrometer na conversa como se tivesse alguma coisa incrível que pudesse ser compartilhada. Então lembrei que minha mãe tinha comprado em Copacabana uma blusa do Mickey… Mou-se! Falei assim, cheia de orgulho, como se aquela aquisição fosse realmente valer alguma coisa na avaliação da menina.

Risos debochados seriam a reação mais evidente, embora naquele momento eu não tivesse ideia do risco. Se tivesse, teria me calado. Mas em nenhum cenário eu poderia imaginar o que a garota faria diante do meu erro fatal. Depois de rir todo o percurso da Gávea ao Jardim Botânico, quando finalmente a Brasília chegou à minha casa, eis que a menina mirou bem a minha mochila que eu aconcheguei nas costas para sair do carro e me deu um pontapé tão forte que fui expulsa do carro e caí de joelhos na calçada. Subi chorando alto a escadaria do prédio. Minha mãe observava da janela.

Jamais consegui transformar aquele momento em algo positivo. Guardei a mágoa. Sei que não é nada bom isso. A verdade, agora percebo, é que o chute me ajudou a criar uma forma de capa protetora em reação a algumas pessoas. Descobri que os perversos estão por todos os lados, disfarçados ou não. Eu provavelmente não teria descoberto isso se não tivesse sido cuspida daquele carro – será? A pergunta que persiste é se a gente consegue ter consciência da crueldade se não tiver algum contato com a mesma. Infelizmente a resposta é não. E, sim, crianças podem ser muito cruéis.

Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira e Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

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