Há muito eu queria. Muita gente que conheço preferiria Nova York, Buenos Aires e até Hong Kong a uma cidade como aquela. Eu os entendo. Sou capaz de imaginar infinitas razões para justificar qualquer uma dessas escolhas, todas excelentes e, a seu modo, únicas. Mas o que aconteceu foi: eu desembarquei do avião e o que há tanto tempo eu ansiava foi se desenhando no ar e se tornando algo tangível a me arrastar por todo o aeroporto e me deixar tonto e ao mesmo tempo, por que não confessar, atônito. De um salto eu já estava no Uber, e nem foi preciso recuperar parte dos infames dois semestres dedicados ao estudo de inglês em minha juventude, pois o som do rádio estava alto e eu me acomodei perfeitamente aos guinchos e suspiros da cantora ali no estofado do banco de trás, indiferente ao motorista.
Uma pena o aeroporto não ser o suficiente distante da livraria para que pudéssemos passar pela ponte e, tal como no sutra de Ginsberg, admirar o sol naufragar nos cumes dos últimos morros da cidade cercada por água. Todavia, naquele instante dourado em que eu seguia no Uber, que era cinza e não verde, não havia mais Ginsberg, Corso, Kerouac, o Velho Bull nem mesmo Charles Bukowski ou Marie Ponsot.
Quando o automóvel encostou perante a fachada, o escritor, editor e livreiro já me aguardava à porta com um sorriso aberto, vasta barba ruiva e seu charme costumeiro, ostentando calça e camisa pretas e, na cabeça, um panamá de abas largas. Sinto informar, por favor não me joguem pedras, que não se tratava do Lawrence Ferlinghetti. E eu não chegara à City Lights. Tampouco aterrissara em San Francisco. Meu destino era maior. Eu fui ao encontro de uma das duas capitais secretas da literatura brasileira contemporânea: Vitória, em pleno Espírito Santo. Detalhe: o termo “capital secreta” não foi cunhado por mim, algo que explicarei melhor mais adiante. E quem me recebia era o Saulo Ribeiro, dono da editora e livraria andante Cousa.
A associação com a mítica City Lights não é gratuita e muito menos apressada. Ambas possuem como características fundamentais o arrojo, a resiliência e uma forte identificação com bases progressistas. Seus líderes são artistas sensíveis e talentosos. Seus títulos contemplam as áreas de ficção e poesia, política, artes e história. A estratégia de divulgação e comercialização adotada por elas foi a de se aliarem a outras editoras independentes. As duas investem em ações culturais tais como leituras públicas, entrevistas com autores (não necessariamente nomes de seus catálogos) e debates. A representante brasileira promove visitas a escolas. Tanto a City Lights quanto a Cousa enfrentaram em diferentes períodos de suas existências uma gama de empecilhos, inclusive de ordem material, mas não desistiram de suas vocações e corajosamente se reinventaram, adaptando-se aos novos tempos.
É certo que a Cousa não sofreu nenhum processo de obscenidade a torná-la célebre instantaneamente e que a realidade norte-americana é muito menos árida do que a nossa. Circunstâncias essas que, a meu ver, a tornam ainda mais especial. Seus maiores feitos midiáticos foram a Caravana Combiousa, quando, em plena pandemia, atravessaram numa Kombi vermelha e branca as estradas do Espírito Santo levando livros e café e gravando depoimentos de escritores locais a respeito dos seus trabalhos, tornando-se matéria de destaque no Portal Uol e em vários jornais e sites, e a recente conquista do primeiro Jabuti para uma editora capixaba com o livro Histórias ao redor, de Flávio Carneiro.
Para mim, o difícil é entender a razão para a Cousa, em solo pátrio, não gozar do mesmo prestígio de sua irmã gringa. Por que os versos de Aldir Blanc em Querelas do Brasil precisam continuar tão atuais quanto pungentes? Será esse Z o que vai nos matando aos poucos, que nos espicaça, aniquila, deixa-nos pobres, de joelhos em brasa, sem socorro, humilhados, vulgarizados, maltratados e, por fim, de naco em naco, acaba de vez com a nossa autoestima?
Saí do Uber e de cara ouvi Saulo anunciar: “Lima, vou ser pai novamente”. Ele estava emocionado. Abraçamo-nos. Logo Natielly, sua companheira de literaluta e vida, se juntou a nós. “Vamos comemorar!”, exigi. Mas não seria possível. Não naquela hora. Haveria um lançamento duplo na Rua da Lama. Os poetas Wilberth Salgueiro e Nelson Martinelli seriam os protagonistas. Precisávamos chegar lá em vinte minutos para que desse tempo de prepararem tudo. Fui de carona na Combiousa.
Era fim de tarde e o sol naufragava nos cumes dos edifícios. A livraria andante encostou em frente ao Cochicho da Penha e Quixote tomou seu lugar ao lado de uma mesa com os livros. Nas caixas de som, o melhor samba e jazz. Pedi cerveja e aceitei a sugestão para comer a melhor coxinha de Vitória. Era mesmo uma delícia.
Cada autor ficou numa fileira de mesas e recebeu seus convidados. Fiquei com a Natielly numa terceira. Saulo transitava nas três. Chegaram o cineasta Alexandre Serafini, os escritores Rodrigo Caldeira, Caê Guimarães e Erlon José Paschoal e se sentaram conosco. Entabulamos conversa. E as garrafas foram se acumulando na mesa.
Vez por outra me apresentavam artistas, professores e amigos. Numa dessas, conheci o tradutor Wilson Coelho, que lançaria o livro Cálida presença: a amizade de Che e Tita Infante através de suas cartas dois dias depois, de autoria de Adys Cupull e Froilán Gonzáles.
Lá pelas tantas, eu admirado com a efervescência da cena e multiplicidade de olhares, Caê soltou o doce: “Rapaz, o Henrique Rodrigues, quando esteve aqui, disse que Vitória e João Pessoa eram as duas capitais secretas da literatura brasileira contemporânea, tão fodas e ocultas”. Não sei se as palavras foram mesmo essas, no entanto, eu me senti envergonhado da minha ignorância, envergonhado do Brazil que não era meu.
Estava nesse bode de cerveja e sensação de bombas explodindo perto no instante em que vi Saulo e Nati de mãos dadas num canto. Estavam com as duas testas coladas e sorriam. Então, por trás de todos os escombros, pude vislumbrar um casal a embalar uma criança que estava por nascer. Em seus braços, ela certamente se sentiria segura. E eu, geralmente pessimista por ofício, acreditei que o futuro, esse fantasma que hoje nos apavora, o futuro poderá ser bom. Em alguma medida, ele será bom.