Feche os olhos para beijar ou para beijar feche os olhos.
Visitei uma exposição em Lisboa que tem um título sugestivo de interpretações: “Exposição de amantes”. A artista portuguesa Raquel André colecionou amantes por cerca de sete anos em várias partes do mundo e fotografou experiências que ela considera íntimas. Uma intimidade menos dramática e mais pautada no prosaico: um casal assiste à televisão, um homem lava os cabelos de uma mulher, um outro par divide uma garrafa de vinho enquanto conversa numa mesa da cozinha, outra dupla ri numa cama.
São fotos de amantes, e como acho bonita essa palavra que, eu sei, tanta gente detesta. Gosto porque não a associo à traição — à traição associo a palavra “traidor” ou “traidora” —, mas à pessoa na qual se confia um amor e seus vários tipos de desejos. Penso em Marguerite Duras quando se refere aos amantes que frequentavam sua casa na França e que mais se adequam à categoria de companhias estimulantes. Penso na dona de uma galeria, onde trabalhei, em Londres, que tinha vários amantes — ou amigos com benefícios, como às vezes ela dizia. Uma senhora de setenta anos que compartilhava intimidade com quatro homens diferentes e cada um deles alimentava — não satisfazia — seus vários desejos. Com um ela ia ao balé e às mostras de arte, com o outro ela discutia filosofia, política e literatura, com um terceiro ela gostava de viajar e havia um quarto que era uma companhia sem notáveis estímulos intelectuais, mas com uma invejável disposição física. Eram os seus amantes. Na falta de um todo, ela ficava com partes.
As imagens dos amantes da exposição, inúmeras, estão coladas por toda uma casa que foi construída para ser revestida de intimidades, trabalho também do cenógrafo José Capela. Nas paredes de cada cômodo, no chão, na mobília somos obrigados a testemunhar estranhos em momentos de convívio feito de confiança mútua. Não há convívio sem confiança porque a intimidade segue como consequência e a intimidade pode aniquilar a fantasia e, com sorte, isso não é ruim. Depende sempre de quem tem a dar e receber e em que altura da vida.
O conceito da exposição de amantes é curioso. Me faz questionar se a artista, de fato, colecionou amantes. Se sim, como algo em série pode, realmente, produzir intimidade? Para nos tornarmos íntimos não seria necessário um certo tempo e uma espécie de dedicação e exercício? Ou basta a intensidade do desejo? A artista relata ter se encontrado com essas pessoas estranhas e dividido com elas alguns momentos de muita proximidade. Uns, ela diz, foram bons, outros nem tanto. Mas não é assim a vida?
Entra-se na exposição/casa acompanhado. São apenas duas pessoas por vez. Cada uma começa a visita pela casa por cômodos diferentes e no final, no quarto, essas pessoas se encontram. Enquanto tudo isso acontece, escuta-se uma gravação com as instruções da artista nos fones de ouvido. Há também música. Nas orientações da artista, um último pedido. O mais aterrorizante: olhe para a pessoa que está com você. Não há nada mais íntimo e difícil do que olhar nos olhos de uma pessoa por um minuto inteiro e completo sem dizer uma palavra. Experimente!
Penso num texto que li na New Yorker sobre esse experimento com casais que estavam juntos há pelo menos dez anos. Eles, já perdidos na massacrante rotina e na cruel pressa do ir e vir, deveriam olhar nos olhos da outra pessoa por sessenta segundos ininterruptos. Não era permitido abraçar, beijar, desviar o olhar e muito menos falar. Era o terror de um mergulho escuro e profundo no você que o outro enxerga dentro do silêncio. Não chega a ser surpreendente que, depois de cada uma dessas experiências, os casais se beijassem. Eram beijos, segundo os relatos, de crescente desespero para fechar os olhos e se esconder de tanta intimidade que é o olho nu e silente. Eram pedidos de socorro.
Os cientistas dizem que fechamos os olhos para beijar porque queremos barrar os estímulos visuais do nosso entorno que interferem com a sensação do prazer do beijo. Mas pode ser também o beijo, para os desesperadamente tímidos, um refúgio que proporciona o desaparecimento do mundo e de si mesmo enquanto pálpebras estão cerradas. Você desaparece e, num confronto, isso é um conforto.
No fim, a dupla sai e pode ver, do alto da casa, o próximo par que explora o espaço de intimidades, seus gestos, seus interesses por determinados cômodos e imagens. Seus incômodos ao observar algumas cenas, a pressa, a pausa de frente a certas fotografias, a repulsa ou a admiração diante daqueles ângulos cotidianos e onde, através do outro, nos achamos. Antes de nós, alguém também nos viu lá do alto da casa, numa passarela que nos leva à saída. É quando nos damos conta que, é possível, o voyeurismo não era nosso, como acreditamos, e que quem esteve exposto durante todo o tempo fomos nós.