Essas frases são música. Como traduzi-las? O japonês se espantava diante da alternativa-precipício de ler Mishima em língua ocidental. Há textos que simplesmente parecem resistir à separação — inevitável em qualquer tradução, pelo menos em certa fase do processo tradutório — entre letra e sentido. Há textos que simplesmente não aceitam dividir-se em dois, não querem se deixar mutilar para cruzar o rio.
Uma das características marcantes da grande obra literária é justamente o grau de harmonia que se alcança entre letra e sentido, entre forma e conteúdo. Desmontar essa união para remontá-la em outra língua é uma arte. As frases da grande literatura contêm música que tende a desmanchar-se em dissonâncias numa tradução descuidada.
Traduzir literatura é um ofício basicamente artesanal. Não pode ser industrializado, mecanizado, informatizado, automatizado. Nenhum esforço nesse sentido dará resultado plenamente satisfatório, pelo menos não enquanto a máquina não pensar como o homem. A tradução é a principal atividade do cérebro humano, é o que melhor o caracteriza, e portanto é o que nele há de mais difícil de emular.
A musicalidade da literatura, e a necessidade de recriar a harmonia em outra língua, fazem do tradutor necessariamente um compositor. Um criador, que na criação tem de apostar todas as suas fichas. Ganhar ou não pode ser uma questão de sorte, mas não pode deixar de depositar aí, na tradução como criação, suas esperanças mais caras.
Como traduzir essas frases que são como música? Sentir a música não basta, que isso o leitor deve ser também capaz de fazer. É preciso ir além, mergulhar no texto de uma forma que, talvez, nem mesmo o autor haja conseguido. Inebriar-se do texto até a saturação, e depois, ainda inebriado, traí-lo com outra língua. Dividi-lo, separá-lo, para melhor compreendê-lo. E reescrevê-lo.
Assim dito já não parece muito simples, mas a prática será ainda pior. Essas frases são música. E a grande obra literária tem, muitas vezes, como um cordão a unir todas as peças musicais ali contidas. Há um fio que perpassa toda a obra e que precisa ser apreendido para que se possa mantê-lo na tradução. O fio condutor da composição — aquela harmonia que dá a unidade da obra — precisa ser descoberto, dominado e reproduzido do outro lado do rio.
O leitor se indigna diante da possibilidade de que obra de tamanha sensibilidade e inspiração, que guarda relação tão íntima com o aspecto material de sua língua original, possa ser como que profanada pela tradução. O risco não é desprezível, de fato. O resultado é incerto, a crítica é segura. O leitor se espanta: como é possível? Há tanta música ali, que certamente se vai perder na passagem. Não se pode transportar água em peneira. Mas chega água do outro lado, isso é certo.
A tradução é como o vôo do besouro. Impossível, mas acontece na prática, como prática rotineira e cotidiana, desde tempos imemoriais. Essas frases são música, mas música também se traduz, música também se pode transportar (com todo o cuidado que merece) através do tempo e do espaço. Na música, buscar a harmonia entre os sons e sua ausência. Na tradução, temperar a luminosidade da letra com o fio cortante do sentido: sol e aço.