Tinha dezoito anos quando li Lolita pela primeira vez. Lembro da capa marrom e dourada, parte de uma coleção de clássicos que minha mãe tinha na estante. Como acontece com leituras de ficção, ao longo do tempo fui esquecendo os detalhes da narrativa mas retive certas imagens – boas obras têm o poder de eternizar certas imagens. Nabokov cravou no meu córtex uma garota que mascava chiclete e piscava para um coroa dentro de algum carro perdido na América.
Como acontece com personagens clássicas, Lolita não é só minha. Ao longo dos anos, somaram-se à minha ninfeta o espectro de outras Los, desenhadas pela imaginação de outros leitores. Mais que isso: depositaram-se sobre a minha Lolita imagens reais, de garotas de carne e osso (geralmente menos carne do que osso) que eu via andando por aí e sendo rotuladas com as três sílabas que tanto espocavam na boca do narrador: Lo.Li.Ta.
Minha Dolores Haze era então um mosaico de Dolores imaginárias e reais onde, curiosamente, todos os fragmentos vinham carregados das mesmas tintas: quentes, rosadas, da cor de sorrisos manchados de batom. Se até semana passada me pedissem para definir a minha caleidoscópica personagem, eu diria que era uma garota insinuante e esperta, a ponto de, apesar dos parcos doze anos, manipular um homem de meia-idade.
Uma semana e muitas páginas depois, descobri que Lolita não é quem eu pensava. Ou melhor, até é, mas a ninfeta insinuante não passa da face minoritária de uma criança triste, perturbada e manipulada por um abusador.
A culpa da minha confusão, obviamente, não é de Nabokov, que escreveu um romance no qual toda sorte de subsídios cintilam para o escrutínio do leitor.
Depois que a mãe de Lolita morre, o narrador – um perturbado mental assumido – dá um jeito de se apoderar da órfã e parte com ela para uma roadtrip onde a estrada, essa representação tão clássica de liberdade, torna-se um cativeiro de asfalto. Ele conta que depois de fazer sexo com Lolita, finge dormir e fica ouvindo seu choro. Admite que, na maioria das vezes, ela sequer sente prazer, chegando a chamá-la de Minha Princesa Frígida. Assume o suborno constante que precisa fazer para que ela faça sexo com ele (num certo momento, o narrador desconfia que Lolita esteja amealhando moedas para fugir e confisca o dinheiro que encontra escondido). Quando ela cogita procurar ajuda, ele ameaça: “vamos ver o que aconteceria com você, menor de idade, acusada de ter causado dano à moral de um adulto?”, completando, em seguida, que seu fim seria um reformatório ou um centro de detenção juvenil. Quando ela tenta se esquivar, ele rasga sua blusa e abre seu zíper. Em outro momento, desfere-lhe um tapa na cara. Chega a bolinar Lolita cantando: “a arma com que te matei, ó Carmen”, e depois segue referindo-se a ela como “minha pequena Carmen”. Fantasia engravidá-la para que ela gere uma filha que ele poderá apalpar já aos oito anos. Não à toa, no final do livro (alerta de spoiler) uma Lolita acabada, aos dezessete anos, diz a ele: “você só devastou a minha vida”.
Enquanto avançava afoita pelas páginas – Nabokov é genial a ponto de criar um narrador simultaneamente repulsivo e hipnotizante –, eu não parava de me perguntar como, na minha primeira leitura, pude ter um olhar tão distraído, tão incapaz de perceber o lado mais gritante da obra. Logo descobri que a cegueira não era privilégio da minha retina. Diversas resenhas e edições, no Brasil e em outros países, definem Lolita como uma história de amor. E vão além: “a única história de amor convincente do nosso século”, crava Vanity Fair, frase reproduzida na última edição brasileira e em muitas outras mundo afora.
O que me leva a pergunta: o que é o amor para essas pessoas?
Talvez a gênese do problema esteja justamente aí: ninguém sabe ao certo o que é o amor. Pergunte para qualquer conhecido seu e você verá que é mais fácil ele definir uma mitocôndria. Ainda que seja dos sentimentos mais almejados, ninguém aprende o que é o amor e nem como identificá-lo ou exercitá-lo, o que faz com que muitas vezes sigamos comprando gato por lebre – e nos distanciando do que tanto queremos.
Mas ainda que não saibamos definir o amor, da mesma forma que não sabemos definir outros sentimentos grandiosos e complexos, sabemos o que ele não abrange. Quem ama não suborna, não estupra e nem destrói a juventude do ser amado. Lolita pode ser definido como um livro sobre desejo, talvez sobre paixão. Sobre doença mental, abuso e pedofilia. Sobre o sonho americano. Certamente não sobre uma relação amorosa entre um homem e uma garota, como alguns insistem em definir. Não só pelos motivos citados acima mas também porque isso pressupõe uma bilateralidade rechaçada pelo próprio narrador: “o que eu possuí loucamente não foi ela, mas a criação que fiz dela, flutuando entre nós, sem desejo, sem consciência, sem uma vida propriamente dita”.
Talvez você esteja se perguntando: se o romance fala tão bem por si, porque se preocupar com o que dizem as resenhas, as capas e as orelhas?
Chamar uma história de abuso de história de amor é retroalimentar a confusão sobre o significado desse sentimento, embaralhando a visão de leitores e, no caso de um clássico que se tornou pop, de não-leitores, instigando ensaios como o da Vogue francesa de 2010, que mostrava “Lolitas” de dez anos com salto alto, maquiagem e expressões perturbadoramente apáticas, numa glamorização da hiperssexualidade precoce.
A objetificação de meninas é algo tão delicado que o próprio Nabokov se ressabiou com isso, antes mesmo de o termo objetificação existir. Em 1958, quando estava prestes a lançar o livro, ele pediu à editora uma capa sóbria, com uma representação não-juvenil da personagem. Recebeu cinco opções. Recusou todas. Por fim, solicitou uma paisagem ou uma versão sem imagem. Daí nasceu a primeira edição, só com letras pretas sobre um fundo verde. Apesar desse esforço inicial do autor, que sabia o que tinha em mãos e temia uma repercussão negativa, o sucesso gerou uma profusão de capas grotescas em vários cantos do mundo, como uma que trazia a imagem de um casal feliz, de uma garotinha com a calcinha à mostra e de uma menina com meias cinta-liga.
Outro problema de confundir abuso com amor é dar a essa prática uma máscara conveniente e romântica, validando a desculpa que lhe serve de sustentação: alguns homens perdem o controle porque amam demais. Esse lero-lero não só anistia o abuso, como ainda coloca o abusador no lugar da vítima. E a vítima no lugar de culpado: pobre homem! Não resistiu aos encantos da ninfeta fatal.
Se o abuso disfarçado de amor vira o estômago da Giovana mulher e mãe de menina, também vira o da escritora. Vender Lolita como um livro de amor é engessar a potência da obra. O clássico de Nabokov nos oferece a oportunidade de entrar por uma claraboia na cabeça de um pedófilo, observando os mecanismos que regem a orquestra doentia do abuso. Ao contrário de autores como Gabriel Matzneff, que faz apologia à pedofilia, usando o poder da linguagem para justificar seus crimes (relações com garotos e garotas a partir de nove anos, inclusive em situação de prostituição), Nabokov não esconde o horror e a ruína dessa prática que, ao que parece, não fez parte de sua vida.
Isso não significa que Lolita seja um livro agradável de ler. Ainda que envolvida na narrativa, em vários momentos tive dificuldade de prosseguir, enojada com cenas que nem a destreza estética de Nabokov foi capaz de edulcorar. Que bom que segui em frente. O que faz de um livro um clássico é a sua capacidade de atravessar o tempo. Seria maravilhoso dizer que Lolita tornou-se antiquado ou dispensável, mas enquanto você lê esta linha, milhões de meninas estão sendo abusadas, e cerca de dois milhões terão a sua infância abreviada, ainda este ano, por serem obrigadas a se casar cedo demais*.
Abrir essa sombria claraboia também é uma forma de jogar luz sobre ela.
* Os dados são do Unicef.