🔓 Brincadeira sinistra

A diversão de ver o futuro através do buraco de uma caixa em contraponto à triste realidade ao redor
Ilustração: Oliver Quinto
14/08/2021

Dia desses minha filha inventou mais uma serventia para as caixas de papelão acumuladas na sala. Pediu que eu abrisse um buraco na caixa e pronto!, por ali podíamos ver o futuro. “Vai, mãe, olha!” E lá fui eu espiar o futuro, sinceramente nervosa. “Ah não!!!” E minha filha animadíssima: “O quê? O quê?”. “Tsunamis, Yolanda!” E ela ria. “O que mais?” “Gêmeos, uma multidão de gêmeos! Também seres estranhos, meio azuis…será que são alienígenas?” E aquela risada gostosa de novo. “Ah não, mil vezes não! Carros voadores, Yolanda!, um enxame deles cobrindo o céu!” E quanto mais sinistro ia ficando esse futuro, mais minha filha gargalhava. Só um buraco aberto numa caixa e o quanto existe ali é conosco.

Mas minha filha nem sempre responde ao sinistro gargalhando. Quando o vê com os próprios olhos, quando o sente muito próximo, vira uma criança de olhos muito redondos, pensativa. Foi assim quando reconheceu, murcha num mastro, a bandeira do Brasil. “Olha a nossa bandeira!” Minha menina tão feliz ali, como que jogando o jogo da memória através da janela do carro, e eu vou dizer a ela o que estou vendo? Sim, eu digo. Que nossa bandeira murchou tal qual a do mastro, que sua cor hoje é outra, cinza de terra incinerada nas bordas, cinza da devoração do garimpo mais para dentro, cinza da fumaça dos incêndios no meio. “Então, Yolanda, está difícil de gostar dessa bandeira desbotada.” Antes será preciso que ela se descole do reino do coisa-ruim e seu séquito e comece a recuperar suas cores.

Foi então que pensei, cá comigo, na notícia dos fardos nazistas que apareceram recentemente nas praias de Alagoas, de um navio da Segunda Guerra naufragado. Agarrada a essa notícia, me veio outra, de quando se rompeu a lama da Mina do Feijão, que envenenou o rio Paraopeba, em Minas Gerais. “A terra está vomitando”, disse o cacique da aldeia às margens do rio. Assim como a terra, o mar também está vomitando. Essa escória de fardos de látex pelo litoral do Nordeste, aliás, tem alguns anos. Ou seja, não é de hoje que o mar está vomitando. Queria crer que isso fosse um indício do começo do fim de uma era podre. Mas os encadeamentos não param e eu penso agora no gelo que vem derretendo na Groelândia e nas previsões alarmantes de enchentes para as cidades costeiras do mundo. Será que somos nós dentro do buraco da caixa e o sinistro da brincadeira é não ser brincadeira alguma? Por via das dúvidas, desconverso de bandeiras e diabos. Há algo bem mais vistoso e admirável no alto de um prédio, “olha só, Yolanda, lá em cima…uma biruta!”.

Mariana Ianelli

Nasceu em São Paulo em 1979. Formada em jornalismo, mestre em literatura e crítica literária, estreou na poesia em 1999 com Trajetória de antes. Em 2013, estreou na crônica com Breves anotações sobre um tigre. É também autora de dois livros infantis. Desde agosto de 2018, edita a página Poesia Brasileira no Rascunho. Escreve quinzenalmente, aos sábados, na revista digital de crônicas Rubem.

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