Ao menos uma vez por semana, se podemos estar prontos até as quatro da tarde, se o frio é um frio com sol, sem muitas nuvens ou vento, se não há outra urgência, vamos nós três, bichos da Aclimação bem aclimatados, pai, mãe e filha, para o nosso necessário banho de bosque. Nossa trilha passa por uma clareira, antes de subir para o verde limão da luz nas copas das árvores. Não é raro encontrarmos uns vultos ao pé dos jequitibás, de gente tão necessitada de bosque quanto nós.
Mas na semana antepassada qualquer coisa arrepiante e estranhamente familiar aconteceu. Havia na clareira três meninas acompanhadas a uma certa distância pela avó. Estavam entretidas remexendo no chão de folhas secas e vermelhas, numa cena que seria graciosamente bucólica, não fosse o som de fundo, de um homem pregando aos brados para uma assistência invisível. “Porque esse Deus, meu querido, esse Deus não abandona!” Magro e barbado, de paletó e gravata, no fundo da clareira, o homem se inflamava, indo e vindo entre dois tocos de tronco, enchendo o ar onde estávamos, gritando para o bosque com aquela atrevida intimidade.
Olhei nos olhos da avó, tentando sorrir, talvez ela pudesse me ajudar a sair daquele conto de Flannery O’Connor. Mas a avó parecia mesmo era ter parte com Flannery e não sorriu de volta, as três crianças repescando entre as folhas e os brados do pastor, “meu querido, vou te contar desse Deus!”. Fomos subindo pela trilha e os gritos do homem conosco, até certo ponto, quando o verde falou mais alto nas folhas e começamos a procurar borboletas. Quase me esqueço da cena perigosa, quase me livro do arrepio, mas disfarçadamente atenta, para o caso de ouvir, depois do silêncio, uma risada. Atenta a passos no crepitar das folhas secas. Atenta.
Deixamos o bosque com o último sol da tarde rebrilhando estrelado no lago do parque. Seguimos pela rampa, como fazemos sempre, desembocando num dos recantos favoritos dos gatos. E lá estava a avó, cercada das três crianças. Passamos por ela e seu rosto de novo impassível. Se é que um rosto pode nos murmurar alguma coisa, o que escuto é que podemos passar pelo parágrafo sinistro sem grandes danos, mas não, ainda não saímos de dentro do conto. Fugir pra quê? Olá, Flannery O’Connor.