Um dos vários problemas do processo tradutório é a falta de base de comparação. Não havendo essa base, é forte a tendência aos desvarios. A criatividade, motor de desvio, é ao mesmo tempo, para o tradutor, dádiva e rota de perdição. Fácil seria se houvesse um terceiro texto — eqüidistante do original e da tradução — que pudesse funcionar como base de comparação.
Seria esse o melhor instrumento não apenas para o tradutor, mas também para o crítico de tradução. Ter ali, a sua disposição, um critério absoluto e irrefutável de cotejo. Toda tradução de um dado original teria de equivaler — não apenas dinâmica, mas estaticamente também — ao terceiro texto. Por definição, o terceiro texto seria idêntico ao original, numa língua tida como neutra, não suscetível às mudanças caóticas e à miríade de possibilidades de interpretação que assolam nossas línguas naturais. Um terceiro texto numa língua neutra, ideal: aí estaria a solução para o milenar problema da tradução.
Outra forma de pensar o problema seria inventar, para o processo tradutório, uma teoria equivalente à gramática gerativo-transformacional. Em vez de terceiro texto, concebamos uma estrutura profunda, em que se situa a base do texto original. Seria uma espécie de terceiro texto também, só que não desenvolvido, mas em potência. Os elementos da estrutura profunda precisam passar por uma transformação adequada para que se tornem texto inteligível.
A tradução seria, então, resultado de uma dupla transformação: primeiro haveria que codificar o original no nível da estrutura profunda. Ali, o texto ficaria como que armazenado de forma não ambígua e livre da entropia interpretativa. Isento da corrupção humana e dos efeitos deletérios do tempo e da distância, o código na estrutura profunda seria o paradigma para qualquer tradução que se fizesse do original, para qualquer língua, em qualquer época. Basta acertar na transcrição, para obter um código que reproduza fielmente o texto original.
A decodificação também exigiria domínio de uma técnica específica. Seria preciso conhecer bem o código e as operações lógicas que conduzem a seu desenvolvimento em texto “natural”. Mas se poderiam dispensar os efeitos perniciosos da permissividade do tradutor (sua tendência à interpretação, mais por falta de conhecimento e pesquisa que por necessidade), que pervertem o verdadeiro sentido do texto original.
Decodificado, o paradigma da estrutura profunda reproduziria — palavra por palavra, sentido por sentido, efeito por efeito, surpresa por surpresa — o texto original. Viria a tradução praticamente perfeita — que imperfeições sempre haverá, talvez por ruídos nos processos transformacionais de codificação e decodificação, provocados pela imperícia do tradutor.
Haveria uma diferença importante entre as duas alternativas. No caso do terceiro texto, teríamos uma base de comparação direta, com a qual se poderiam comparar, sem processos transformacionais nem códigos, tanto o original quanto a tradução. Simplificando: o terceiro texto poderia ser lido diretamente, tanto quanto o original ou sua tradução. No caso do paradigma situado na estrutura profunda, teríamos um código estabelecido num sistema diferente daquele de uma língua. Não poderia ser lido diretamente, como texto, mas dependeria de um processo transformacional para ser produzido e acessado.
Fico pensando qual dos dois meios seria o ideal como caminho certeiro para a consecução do sonho menardiano: não fazer uma mera tradução, mas escrever de novo o próprio original. O terceiro texto pareceria, talvez, mais adequado. Desconfio um pouco dessa coisa de códigos e processos transformacionais: parecem conter em si a semente da entropia que nos lançaria de volta aos labirintos inextricáveis da tradução.