🔓 Férias de um viajante imóvel

Na pandemia, os livros são um tipo de agência de viagens para outros tempos e lugares
26/06/2021

Agora que passamos do meio milhão de mortos por Covid (aqui o cronista pensa que escreve propositalmente um fato datado, como quem lança uma isca para a memória no insopitável lago do futuro), o bom senso diz que ainda é preciso fazer quarentena. Ou pelo menos as medidas de contenção da doença deveriam ser estimuladas pelo poder público – ou algo que o valha.

Desta feita, tive de tirar férias do meu suado ganha-pão, reservando uns bons dias para ficar na sala, em plena e derramada boréstia.

Não só pode, como é um tremendo clichê afirmar isto: na pandemia, os livros são um tipo de agência de viagens para outros tempos e lugares. Mas da mesma forma como em qualquer passeio, você acaba praticando a conhecida tese de Einstein, segundo a qual tempo e espaço são a mesma coisa, acaba visitando também os recônditos caminhos da alma (e tome lugar-comum para tratar de jornadas quase sempre incomuns).

Livros são a tecnologia mais incrível de transmissão de conteúdo já inventada. Alguns me fazem companhia no sofá, de maneira que os cito sem merchan, panelismo ou quaquaragem:

O sentido e o fim, de Mike Sullivan (Reformatório): os contos trazem personagens cheios de agonia diante das múltiplas finitudes. O enterro dos ossos é redondo, com umas pitadas de ironias excelentes, e dou até uma dica de atividade de mediação: círculo de leitura intergeracional.

O sol dos dias, de Taylane Cruz (Penalux): já os contos da sergipana vão para outro caminho, transmutando as dores num tipo de ternura. O Riso dá um misto de tristeza e sorriso ao final da leitura. Uma coisa que me chamou a atenção é o uso hábil do estilo entrecortado e frases maiores.

Os supridores, de José Falero (Todavia): o romance de ação em que repositores de supermercado começam a vender maconha é bem bom. O trecho em que o personagem detalha a teoria marxista na cadeia produtiva dos baseados é hilário.

Ao pó, de Morgana Kretzmann (Patuá): nesse romance, uma atriz tenta viver o presente com os ecos traumáticos da infância. A violência sexual, especialmente sobre as mulheres, é mostrada com todas as cores quando se levanta o tapete hipócrita do Brasil arcaico que persiste.

Entre os vírus e os vermes se esgueiram poemas, de André Plez (Penalux). Livro de poemas explicitamente pautados pelo desgoverno atual, que me remeteu a uma mistura de irmãos Campos com Gullar e Affonso Romano de Sant’Anna. Os poemas evocam o leitor para a consciência poética e política: “Entre a minha sobra e a tua/ Há uma distância a ser cumprida”.

Eu, que não amo ninguém, de Franklin Carvalho (Reformatório): romance que dá uma aula de voz narrativa. Nos anos 1960, João de Isidoro precisa entregar um pó que atrai mulheres a um senhor de engenho, mas nos conduz para uma jornada pelo Nordeste temperada pelo realismo mágico.

E a lista de livros a serem lidos está lá, mas estou com preguiça. O bom é que livro não estraga fácil e pode esperar. Vou a outras “mídias”, como se dizia até semana passada.

Prostrado, noto que filmes e séries recentes são facilmente abandonáveis. Lembro-me de quando trabalhava na videolocadora, uma era distante na qual era preciso quase lutar para conseguir um VHS, para cujo conteúdo era preciso dedicar tempo e boa vontade: reservei, estou pagando e por isso vou ver até o fim.

O streaming evoluiu como canal ou forma em termos de praticidade, ao passo que os conteúdos, em geral, se situam entre o paradão e o descartável. Por isso acho que alguns games têm conseguido contar histórias melhor, mas isso é assunto para outro texto, e deixa eu anotar aqui para não esquecer.

Henrique Rodrigues

Nasceu no Rio de Janeiro (RJ) e trabalha na gestão de projetos de incentivo à leitura. É autor de 15 livros, entre romance, poesia, infantis e juvenis. Site: www.henriquerodrigues.net.

Rascunho