Contra os cultos (2)

O que padre Vieira pretende é que os padres reconheçam e se submetam ao “decoro” que os rege, que é próprio do gênero particular da oratória sacra
Ilustração: Miguel Rodrigues
01/07/2021

Na coluna anterior, tentei mostrar como tradicionalmente a fortuna crítica do padre Vieira (1608-1697) interpreta — a meu ver, de maneira equivocada — a questão da censura aos “estilos cultos” no Sermão da Sexagésima, o mais célebre dos sermões do jesuíta. Agora avanço um pouco mais a questão, tentando mostrar como tal censura não pode ser desvinculada do modo como Vieira pensava o gênero da oratória sacra, em que era um notório especialista.

Para dar esse passo adiante, é preciso perceber inicialmente que, quando Vieira especifica as regras da “arte sem arte” que propõe para os sermões, ele o faz com base na parábola do semeador, que está no Evangelho do dia (Mateus, 13, 1-23), estabelecendo uma estrita concordância entre os termos da parábola e as partes tradicionais da arte retórica — a saber, inventio (o repertório de lugares comuns, argumentos e temas disponíveis); dispositio (a ordem de apresentação desses lugares); a elocutio (a organização discursiva do enunciado, desde a escolha lexical até as figuras de linguagem).

Com isso em mente, podemos ler melhor o seguinte trecho do sermão:

O trigo do semeador, ainda que caiu quatro vezes, só de três nasceu: para o sermão vir nascendo, há de ter três modos de cair. Há de cair com queda, há de cair com cadência, há de cair com caso. A queda é para as coisas, a cadência para as palavras, o caso para a disposição. A queda é para as coisas, porque hão de vir bem trazidas, e em seu lugar; hão de ter queda. A cadência é para as palavras, porque não hão de ser escabrosas, nem dissonantes; hão de ter cadência. O caso é para a disposição, porque há de ser tão natural e tão desafetado que pareça caso e não estudo.[1]

Ou seja, Vieira se refere, respectivamente, às “coisas” da invenção, às “palavras” da elocução e ao “caso” da disposição para acentuar em cada uma dessas partes técnicas o tipo de conveniência mais favorável ao sermão eclesiástico. O conjunto das prescrições reforça o cuidado de que nada prejudique a dignidade de que se reveste a “pessoa” do orador — aqui entendida retoricamente como imagem pública do pregador eclesiástico —, pois qualquer arranhado nessa imagem interfere diretamente na eficácia da pregação junto ao auditório.

A rigor, não há nisso nenhuma novidade criada pelo padre Vieira: no passo citado, ele apenas aplica ao caso particular do pregador cristão o enunciado aristotélico relativo às “provas” que incidem sobre o “caráter” do orador. As mesmas provas foram interpretadas por Cícero e Quintiliano como “provas morais”, isto é, argumentos que são elaborados tendo em vista a construção da imagem ética (tanto em relação à moral como aos costumes) de quem produz o discurso. Adaptada ao auditório cristão, a referência às provas desse tipo acentua o compromisso incontornável da elocução do sermão com a imagem pública do pregador.

Consideremos agora este outro trecho do sermão:

Pouco disse S. Paulo em lhes chamar comédia, porque muitos sermões há que não são comédia: são farsa. Sobe talvez ao púlpito um pregador dos que professam ser mortos ao mundo, vestido ou amortalhado em um hábito de penitência (que todos, mais ou menos ásperos, são de penitência, e todos, desde o dia em que os professamos, mortalhas); a vista é de horror, o nome de reverência, a matéria de compunção, a dignidade de oráculo, o lugar e a expectação de silêncio. E quando este se rompeu, que é o que se ouve?[2]

O passo acima ajuda a esclarecer o que Vieira espera, de fato, dos procedimentos retóricos aplicados por um sermão. Notem como ele vai compondo a narração de uma cena grave, circunspecta, cujo coroamento se dá com a descrição da admiração muda e respeitosa do auditório no momento em que o pregador sobe ao púlpito. E essa admiração que Vieira descreve no auditório da cena fictícia que vai descrevendo é potencialmente a mesma que sente o auditório real que aguarda o desdobramento do seu próprio sermão. Apenas que, como se vai ver, os desfechos das duas cenas, a fictícia e a real, vão em sentidos opostos.

Ocorre também que esses desfechos não vêm logo, ao contrário. Está bem claro o propósito de Vieira em prolongar a cena de modo a adiar ao máximo a resolução do nó narrativo e a aumentar o suspense da sua narração. É assim que ele introduz, no meio da narração da cena, a novidade da presença de um “estrangeiro”. Vejam:

Se neste auditório estivesse um estrangeiro que nos não conhecesse, e visse entrar este homem a falar em público naqueles trajos e em tal lugar, cuidaria que havia de ouvir uma trombeta do céu, que cada palavra sua havia de ser um raio para os corações, que havia de pregar com o zelo e com o fervor de um Elias, que com a voz, com o gesto, e com as ações havia de fazer em pó e em cinza os vícios. Isto havia de cuidar o estrangeiro. E nós, que é o que vemos?[3]

Apenas então, quando as justas esperanças do fiel representadas pelo estrangeiro já estão bem pintadas ante a imaginação do auditório, padre Vieira se dispõe a avançar, rompendo as expectativas mais honestas antes cuidadosamente construídas. E o efeito dessa ruptura, dramaticamente ampliado por Vieira, resulta em indignação violenta, a que não deixa faltar uma ironia dura, que fere sem dó o pregador que não cumpre o seu ofício:

Vemos sair da boca daquele homem, assim naqueles trajos, uma voz muito afetada e muito polida, e logo começar com muito desgarro, a quê? A motivar desvelos, a acreditar empenhos, a requintar finezas, a lisonjear precipícios, a brilhar auroras, a derreter cristais, a desmaiar jasmins, a toucar primaveras, e outras mil indignidades destas. Não é isto farsa a mais digna de riso, se não fôra tanto para chorar?[4]

Neste ponto, cabe perguntar: o que Vieira quer demonstrar exatamente com a construção dessa espécie de meta-teatro, em que traz ao ouvido dos fiéis a figura incongruente de um mau pregador? Que o ornato é fútil? Que o “estilo culto” deve ser universalmente condenado como má literatura como é usual dizer-se na fortuna crítica de Vieira? Não creio. Fosse isso, e não precisaria colocar um sacerdote, como ele mesmo, no centro da cena. Seria bem mais fácil para ele referir e ridicularizar um orador antigo, um poetastro ou um político da corte de então. Mas não: ele constrói deliberadamente o fracasso patético de um colega seu, de um sacerdote e pregador cristão como ele. Isto apenas reforça o que está claro desde o início: a sua crítica se dirige a pregadores, e não à retórica em geral ou à literatura produzida em sua época. O que ele pretende é que os padres, e apenas eles, reconheçam e se submetam ao “decoro” que os rege, que é próprio do gênero particular da oratória sacra, cuja observância é decisiva para qualquer pregação frutificar. Por melhor que seja a sua construção discursiva interna, sem a obediência a esse decoro, o sermão não se sustenta como força persuasória, vale dizer, como fator de conversão eficaz do auditório cristão.

Notas

[1] Sermões, I, Porto, Lello & Irmão, 1959, p. 18-19.

[2] Idem, p. 33-34.

[3] Idem, p. 34.

[4] Idem, ibidem.

 

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

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