Quando Eva, certa manhã, despertou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseada numa traça. Estava deitada sobre suas costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, dividido por segmentos arqueados, no topo do qual a coberta do Mickey, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. “O que aconteceu comigo?”, pensou. Não era um sonho. Seu quarto, um autêntico quarto humano, só que um pouco pequeno demais, permanecia calmo entre as quatro paredes bem conhecidas. Ao seu redor, um indício do que induzira a transformação: os livros sobre a cabeceira. Todos devorados na última noite.
É bastante provável que um dia minha filha conheça o trecho de Kafka que deu origem ao pastiche acima, graças à metamorfose que ela sofreu no último ano. Como quase todos, Eva não nasceu traça. Nasceu humana, dotada da preguiça dos humanos, preferindo ver um filme ou jogar online com as amigas do que ler qualquer coisa.
Por um tempo cheguei a pensar que ela nunca seria uma leitora, o que me preocupou bastante: como suportaria conviver comigo, uma mãe que fica horas em silêncio aos domingos, emitindo apenas o ruído da virada de página? Da mesma maneira que alguns se imaginam com o par romântico numa paisagem de águas cristalinas no Taiti, também sempre me imaginei, mas abraçada a um livro, dormindo de conchinha com suas lombadas. Meu companheiro me aguenta porque é igual a mim. Num arroubo de romantismo, cogitei comprar um projetor: poderíamos ler no teto do quarto as mesmas páginas de um romance.
Ler é a única forma de viver uma história em completo silêncio, e eu amo essa perspectiva de agitada quietude. Portanto, para o bem do convívio familiar, era fundamental que eu convertesse a minha filha. Talvez essa seja a mais bela forma de conversão, quando qualquer bíblia serve, porque a revelação não está em determinadas palavras mas na possibilidade de seguir iluminando-se sempre e de diversas maneiras.
Mas, como disse, minha filha é humana e, aos oito anos, ainda que já soubesse ler, preferia usar seus dotes cognitivos para decifrar como ganhar pontos no Roblox. Tentei todos os tipos de livros infantis. Assinei um clube de leitura para a idade dela, apostando numa mais certeira curadoria. Sem resultado. Você gosta de ler, ela me disse uma vez, mas eu não!
Nesse momento, eu poderia ter desistido. Talvez eu tenha desistido. Se ela não queria ler, tudo bem, mas teria que respeitar a rotina da casa. Depois do jantar, não usamos nenhum tipo de tela. Deitamos e lemos. Ela teria que ir para o seu quarto e encarar o novo vazio contemporâneo: a vida inanimada que lhe cerca. Durante muitas noites, desenhou. Em outras, brincou com bonecos na cama. Iluminou com lanterna estrelas coladas no teto. Fez slime com pasta de dente. Um dia reparei que tirou um gibi não sei de onde e começou a ler. Escutei algumas risadas, aquele ruído tão familiar das páginas virando. Fingi que fui pegar água e espiei: era da Mônica.
Não sou entusiasta do Mauricio de Sousa. Acho que sua turma envelheceu mal. Até há pouco tempo, Cebolinha e Cascão ainda davam notas para as garotas em concursos de beleza. Uma vez levei Eva para ver uma peça da Mônica na qual ela e Magali disputavam um príncipe, nas palavras da dentuça: com medo de ficar para titia. Seus personagens já assinaram dezenas de produtos questionáveis, como biscoitos que fazem mal à saúde. Mas no dia seguinte eu estava na banca, dando meus copeques para o cartunista.
Eva engrenou na leitura dos gibis. Vez ou outra eu tentava arejar o universo, trazia umas tirinhas do Calvin, mas ela não queria saber de nada que viesse de um traçado distante. Durante exatamente um ano, tudo o que ela leu foi a Turma da Mônica, em quantidades cada vez maiores, e sem demonstrar interesse por qualquer outra coisa. Até que um dia o casulo se rompeu e, onde antes havia uma borboleta, resplandeceu uma traça.
A companhia dos gibis por uma ou duas horas todos os dias tinha lhe dado velocidade de inseto. Não cansava mais saltando sobre as vírgulas, nem atravessando hífenes ou o terreno pedregoso das palavras desconhecidas. Foi nessas patas que atirei um livro que carrego com carinho desde a infância: Grimble, de Clement Freud. Quando acordei desta noite, ela tinha devorado todas as suas noventa e duas páginas.
Essa metamorfose me fez pensar nas palestras que já dei, nos estudantes envergonhados, confessando que não gostam de ler. Costumo repetir que, se alguém não gosta de ler, é porque ainda não leu a coisa certa. E aqui vale a pena sublinhar: a coisa certa para cada um. Não para aquela pessoa que acha que sabe o que é certo para todo mundo. Você tem que ler isso e Você tem que ler aquilo são frases que só servem para afugentar pares de olhos já cansados de ter que tanta coisa.
Um desses estudantes me segredou que só gostava de ler horóscopo. Ótimo, eu disse, leia muito horóscopo, todos os dias, porque quem começa com libra acaba indo para gêmeos, para os ascendentes e a astrologia, quem sabe para a astronomia, a filosofia, e tudo isso pode dar em Paulo Coelho ou em Clarice Lispector, tanto faz. A traça e sua couraça já estarão formadas. E tal qual a barata de Kafka, o corpo pode até ser um problema, mas a mente sempre se moverá adiante.