🔓 Carta a mim

Ao organizar material para o site, a cronista encontra uma pessoa que há muito tempo não via e que lhe pareceu distante, irrecuperável: ela mesma
Ilustração: Carolina Vigna
04/04/2021

Outro dia, pedindo a um grupo de alunas que fizessem um exercício de escrita e produzissem uma carta a uma pessoa que não viam há muito tempo, imaginei para quem seria a minha. Não consegui pensar em ninguém. Até porque as cartas foram substituídas pelas mensagens nas redes sociais, e eu precisaria encontrar alguém no fundo da garrafa do tempo, alguém que já estivesse morto de verdade ou morto apenas para mim. Eu mato pessoas que não morreram de fato.

A memória anda cansada, confesso. Tenho tido preguiça de esticar o olhar para o começo do dia, especialmente neste verão eterno. Não queria tirar ninguém da lembrança dormente, ressuscitar. Então, a quem escrever?

Foi quando, organizando o material do meu site, encontrei uma pessoa que há muito tempo não via e que me pareceu distante, irrecuperável: eu mesma. Era uma “eu” bem diferente da de hoje, que escreve a vocês neste segundo ano pandêmico, tentando colar as asinhas da esperança e imaginar que, depois desse momento doentio, haverá alguma paz. Era uma “eu” cheia de vigor e animação, embora também cansada, com filhas pequenas. Era uma “eu” sorridente. Participava do programa do Ziraldo e falava da carreira que estava começando. Incrível como me pareceu distante aquela mulher.

O que mais me chamou a atenção foi a inocente confiança do futuro. Talvez eu deva aprender com ela e, na distância emocional que nos separa, tentar colocar entre nós uma corda de equilibrista e caminhar lentamente até aquele sorriso.

A entrevista terminou, e Ziraldo apresentou uma música – era de praxe o programa finalizar assim. A música “para mim” (assim eu pensei) foi Andar com fé. Senti vontade de chorar, mas segurei, óbvio, embora já chorasse por dentro de emoção. Na minha inocência da hora, imaginei que o destino me enviava de presente a confiança no futuro. Sim, era um recado da vida.

Segui em frente, publiquei vários livros. A carreira andou. Só que aquele sorriso de otimismo sumiu. Ainda sorrio bastante, mas não tenho a convicção de que a música era para mim. Preciso encontrar novamente a certeza da fé – talvez ela, a “eu” inalcançável, me ensine. Então, a carta que eu escrevo é para mim mesma, que (me) deixei naquele passado próximo porque nem faz tanto tempo, embora pareça uma outra vida dentro da mesma existência. A quem pedir que as palavras cheguem até aquela pessoa que eu fui com o pedido de socorro? Para que ela me estenda sua confiança no futuro?

Preciso com urgência voltar a confiar que posso mover alguns moinhos de vento, que eu tenho um propósito de existir neste mundo cheio de perigos e mistérios, com filhas e medos, mas disposta ainda a seguir – em confiança? Falta a certeza de que o destino reserva surpresas boas, como a música escolhida para finalizar o programa e que eu imaginei ser para mim. Talvez fosse.

Acontece que as asas daquelas antigas esperanças se quebraram depois que elas fizeram seus pequenos voos, e eu não prestei atenção que era tempo de construir novos pares esvoaçantes. A visão de mim, sorridente e algo inocente, me lembrou desta urgência. Sempre é tempo de construção – quem me diz é ela, não eu, em resposta ao meu pedido de socorro, ainda que não consiga me escutar.

Naquela época, eu não sabia que a morte existia, porque a morte de quem está longe é apenas uma lenda – dizem por aí que se morre. A morte só começa a existir quando alguém muito próximo desaparece. A “eu” de hoje já sabe.  Ela me acalenta e me conforta apenas com sua presença distante. Sua voz ainda macia, sem o desconforto de dores futuras, me faz sorrir um pouco mais, pena que não daquela forma irrecuperável. Escrever para mim mesma é um eco profundo. Estranho que eu possa ouvir o que ela me diz, embora não ela saiba que peço ajuda; não consegue ouvir meu lamento, nem a descrição do mundo de hoje. Ela não sabe nada sobre a atualidade e não serei eu quem irá avisar. A confiança no futuro, a fé na certeza de que a música escolhida pelo programa é para encorajar seus passos, nada disso pode ser modificado pela minha palavra grosseira, vinda do futuro. Em contrapartida, ao ouvir seu riso, sua voz tão maternal e amiga, me reconforto com alguma coisa próxima à esperança. Ensaio também um sorriso.

Quem sabe eu possa tentar um recomeço de mim? Vasculhar-se pode ser uma forma curiosa de encontrar versões diferentes, perdidas e melhores da gente…

Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

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