A solidão dos desgarrados

Em "A estrangeira", com toques de rancor e sagacidade, Claudia Durastanti narra seu desenraizamento e a trajetória pouco ortodoxa de sua família
Claudia Durastanti, autora de “A estrangeira”
02/04/2021

“No nosso tempo as distâncias desapareceram e desapareceu também o medo da tuberculose. Por causa das virtudes dos aviões e dos antibióticos, essas duas desgraças desapareceram”, escreve uma personagem remetente do romance epistolar A cidade e a casa, de Natalia Ginzburg. O custo do desaparecimento dessas desgraças não é baixo: se hoje chegamos mais longe e vivemos mais, também sofremos por tantas outras coisas. Esse mundo de limites expandidos, que ganhou o conceito teórico de “não-lugar”, é explorado por Claudia Durastanti em A estrangeira pelo efeito colateral da solidão dos desgarrados, que andam sem saber muito para onde ir e sem ter para onde voltar.

Dividido em seis partes — cinco eixos temáticos e um breve epílogo —, o livro da americana que escreve em italiano parte do desenraizamento de Durastanti e da trajetória pouco ortodoxa da sua família para contar uma história pessoal e comentar o mundo ao redor. Nos melhores momentos do texto, o trânsito entre particular e universal é feito com sagacidade. Em alguns trechos, curiosamente, o rancor parece prevalecer, o que talvez comprometa o alcance da narração ao mesmo tempo que, precisamente pela característica ensimesmada, registra aspectos fortemente contemporâneos.

Desterros
Vale destacar o modo como a jovem autora desvirtua o significado convencional de cada título das seções que ordenam a narrativa. A primeira delas, Família, é aberta com o encontro de seus pais — dois deficientes auditivos —, passa pela história pregressa da família de cada um, e é encerrada com a separação dos genitores. Há alguma linearidade na condução dos eventos que delineiam a família nuclear, mas o correr do tempo não é o nexo narrativo predominante.

Em geral, a articulação se dá pela afinidade temática, estilhaços de memória desdobrados na relação com o mundo de fora. A primeira noção de estrangeirismo é construída junto à sua oposição mais natural: o pertencimento familiar. Ao narrar sua família partindo das fraquezas e do caráter disfuncional dos pais, Durastanti depõe sobre o impossível de pertencer em razão da ausência quase completa da potência protetora que a dependência de cuidadores pode fornecer.

Viagens, a seção mais longa, é dedicada à espacialidade do sentimento de estar fora. O ponto de partida é a primeira infância em Nova York em meio à família materna expandida e as particularidades da comunidade ítalo-americana. Depois, o itinerário faz uma parada no pequeno povoado do sul da Itália, para onde a narradora se mudou após a separação dos pais, e termina em Londres, cidade escolhida pela autora para morar e de onde o texto é escrito. A denominação “viagens” para o relato dos lugares onde viveu garante à história de Durastanti certa impermanência duradoura no estabelecimento em diferentes espaços, dinâmica precária de um enraizamento impossível.

Saúde tem uma toada mais fragmentária, predominante na metade final do livro. Também aqui a noção mais convencional do termo é extrapolada para o texto assumir em alguns momentos o fluxo de um ensaio sobre a linguagem. Talvez para sugerir um estrangeirismo que corre nos sangues de suas veias, por ter pais exilados da linguagem por causa da surdez. Transitando entre anedotas familiares, pensamentos sobre filmes e livros, e eventos ocorridos consigo mesma, a autora trata as palavras com curiosidade desconfiada, de quem não as vê como mero instrumento:

Em italiano, o verbo “sentire” coincide com a capacidade de sentir um sentimento e um sentido preciso, a audição. Em inglês não é assim, “to hear” e “to feel” são duas ações bem distintas. Não sei como funciona em outras línguas. E não sei como traduzir as vezes em que minha mãe fica deitada na cama com os olhos fechados e sussurra: “não ouço nada”, sem perder tudo aquilo que ela quer me dizer.

A quarta subdivisão, Trabalho e dinheiro, se detém nas possibilidades de ancoragem da vida adulta, ainda que insuficientes e transitórias. O estrangeirismo parte do relacionamento com os pais nos efeitos práticos dos sentidos que os dois puderam dar à surdez e toca a impressão dos traços da privação econômica e das noções de ócio e emprego.

Na quinta parte, o estar fora é pensado junto às ilusões do amor; o lugar que se quer eterno ao lado de alguém, o sentir-se necessário, as efervescências dos primeiros encontros que fazem parecer justificados todos os percalços e as desventuras anteriores são articulados também sob o viés do pertencimento. Como nas partes anteriores, a instabilidade parte da vivência individual para desembocar em conjecturas sobre formas de viver e tentar se agarrar a alguma coisa que possa servir como orientação.

Instabilidade constante
Em um mundo de fronteiras dilatadas, sair da terra natal não tem necessariamente a aura do desbravamento. No caso da narrativa de Durastanti, o fluxo migratório oscila entre a negação de suas definições formadoras e a falta de um lugar para o retorno. A instabilidade constante de referências, como imigrante e filha de surdos, é tamanha que atinge também a relação com a linguagem.

E está aí uma virtude da escritora: ao falar da sua condição de estrangeira perene, ela consegue falar da regra da qual se sente excluída. A acepção mais interessante e pertinente do estar fora é a distância pela qual observa o mundo: o diagnóstico que Durastanti faz do próprio tempo passa pela forma que o desvio pode expressar a norma.

Proteção implica abdicar da autonomia. Já liberdade envolve poder de decisão com o custo da perda do cuidado zeloso de um terceiro. Não é um equilíbrio de fácil gerenciamento. E chama bastante atenção a maneira contemporânea de caracterizar os próprios pais, possivelmente uma configuração distinta dessa impossível calibragem entre segurança e liberdade.

Se lido em conjunto com a Carta ao pai, de Franz Kafka, A estrangeira pode ser pensado como a manifestação de uma dobra no que diz respeito às formas de absorver as marcas de quem nos colocou no mundo. Se o narrador kafkiano não sai do lugar de filho e atribui a imobilidade ao pai, a narradora de Durastanti conta sobre a dor de nunca ter ocupado devidamente a posição de filha. Fica a sensação de que quando os pais são vistos pelas fraquezas, a angústia reside mais na desorientação do que na pressão esmagadora de um propósito. E segue o baile das desgraças desaparecidas, sempre sucedidas por novas.

A estrangeira
Claudia Durastanti
Trad.: Francesca Cricelli
Todavia
256 págs.
Claudia Durastanti
É filha de italianos e nasceu nos Estados Unidos, em 1984. Aos seis anos, mudou-se para a Itália com a mãe e o irmão mais velho, e atualmente mora em Londres. Tradutora e escritora, seu livro de estreia Un giorno verrò a lanciare sassi alla tua finestra foi publicado em 2010. A estrangeira foi finalista do prestigiado Prêmio Strega.
Iara Machado Pinheiro

É jornalista e mestre em teoria literária.

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