Pequenos equívocos

Cantamos músicas ridículas para embalar um nadador que nunca se completou e nisso também nos parecemos: nadamos feito avestruzes abandonados numa cachoeira
Ilustração: Raquel Matsushita
02/04/2021

Tentei ser Deus. O fracasso me acompanha na algazarra dos dias. Eu o vejo sempre congelado no instante do primeiro encontro. Nossos olhares fixos um no outro. A cumplicidade de dois estranhos. Há curiosidade, medo e assombro em ambos os lados do universo. Vejo-o pequeno, delicado, desgrenhado. Busco entre as camadas de trapos da maternidade os dedos dos pés. Lá está a marca ancestral que nos une. Disso não pude mudar o rumo — o traçado do caminho que nos leva ao fim da jornada. A geografia do corpo será sempre um cárcere na arquitetura herdada. A forma, os ângulos, tudo nos aproxima. Mas imaginava possível levá-lo para longe de mim. Afastá-lo da incerteza, dos medos, da ansiedade aguda a escavar insônias. O plano construído: moldar no barro recém-nascido um menino a mover-se distante dos meus abismos.

Quando músculos e ossos começaram a esticar, a forma longilínea despontou. Algo não ia bem. Trambolhava o corpo magro sempre em minha direção. Eu o amparava no desequilíbrio dos primeiros passos, na espessura sutil dos movimentos. Acreditava que o trem mudaria de trilhos. Crescia rápido. De repente, os pés acertaram o trajeto. A boca desenhou as primeiras palavras. A língua teceu sons curiosos. A respiração da casa ganhara a companhia de ruídos que me perseguiam da cozinha à sala, do quarto ao banheiro — um fiel escudeiro de um rei esfarrapado. Não sabia como fazer, mas precisava levá-lo para o outro lado.

Por que herdar a ferrenha timidez, certa fobia social, o gosto pela solidão? As muitas dúvidas sobre a eternidade, a bondade divina, o afago permanente de um Deus glorioso? De que adianta um calabouço quando a vida fervilha ao redor? Não que isso seja uma busca permanente — é somente mais uma tentativa de proteção.

Na placidez dos dias — naqueles dias em que o amor é eterno — acolhi-o com a disposição de um guerreiro. Protegê-lo é apenas uma das minhas tantas fraquezas. Tudo nos escapa por entre os dedos. Agora, diante do caos do mundo, o casulo se mostra ao mesmo tempo uma prisão e um oásis — misto de acolhimento e perdição. A paz da solidão nos sufoca na ânsia de dar vida aos pés, aos abraços, ao encontro desavisado na esquina. Somos estranhos nas nossas semelhanças.

Ele segue ao meu lado. Não desgruda mesmo na pressa que o corpo assume na vertical. Ao esticar a pele, transforma-se num pequeno homem. Mas algo não o abandona: a teimosa mania de se parecer comigo. Talvez faça de propósito para provocar meus maiores assombros. Por que ainda somos tão parecidos? É verdade que pouco fiz para tirar-lhe os contornos tortos da maldição genética. Seria possível fazer diferente? Levei-o por caminhos que sempre se bifurcaram em uma única direção: a de nós mesmos. Mas em algum lugar das minhas expectativas vociferava uma voz muda: seja diferente.

Não escrevo para me justificar. Mas para compreender. É pelo vazio das palavras que abro possibilidades.

Quando ele aprendeu a andar de bicicleta, tudo parecia perdido. Levou tempos para se equilibrar, para aprumar o corpo magrelo e, como não poderia ser diferente, desengonçado. Era ele ou eu quem pedalava em desabalado desespero? Uma vontade imensa de equilíbrio. Como se algo muito importante dependesse daquele gesto tão banal. Aos poucos, deu tudo certo.

Quando fez o primeiro gol, correu feliz em minha direção. Eu estava numa arquibancada improvisada no colégio, num fim de tarde um tanto melancólico. Nisso, somos muito diferentes. Nunca os olhos do pai se fixaram nas minhas pequenas conquistas. É por isso que sempre estou lá: não quero ser o melhor, mas apenas um pouco diferente. E é nesta tentativa quase mesquinha que me agarro para fazê-lo distanciar-se dos meus passos. Acumulo uma coleção de equívocos.

Quando deu as primeiras braçadas na piscina de água tratada, eu estava lá para evitar o pavor. Calculamos juntos as distâncias. Cantamos músicas ridículas para embalar um nadador que nunca se completou. Nisso, também nos parecemos: nadamos feito avestruzes abandonados numa cachoeira.

Os percalços da vida o irritam com extrema facilidade. O perfeccionismo o persegue. Olha-me com incredulidade feroz diante das injustiças. Agarra-se a poucos amigos. Teme a multidão. Evita os estranhos. Sente-se feliz no aconchego da intimidade familiar. Olha desconfiado para os lados. E segue a crescer feito uma vareta em direção às nuvens. Pensa também em voar tal os elefantes que inventamos nas histórias noturnas?

Não conheço todos os seus sonhos e pesadelos. Não conheço todas suas ambições e frustrações. Não conheço todas as suas alegrias e tristezas. Mas o reconheço no reflexo que vejo o tempo todo. Talvez algumas coisas mudem. Talvez sigam sempre iguais.

Sabemos: a jornada terá um fim. Por ora, seguimos a consertar algo que nos parece inevitável.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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