A literatura pode ser comparada à boa música. Esta, ao ser bem executada, faz que não lembremos que é preciso estudo, instrumentos e seres humanos para executá-la. O conjunto de som, perfeito, chega-nos natural, como se saísse do nada e se materializasse no nosso ouvido. Embora se saiba que a natureza não é perfeita nem modelo para ações humanas, é o que se pode tomar como exemplo mais perfeito de comparação. Com o texto literário, acontece o mesmo, ele não pode chegar artificial, forçado, arranhando os nossos sentidos. Sons e significados arrumam-se magicamente, ainda que para descrever a tragédia, a imprevisibilidade, ou a fugacidade da existência. Quanto à forma, dou um exemplo. Faz algum tempo, num congresso de literatura, um convidado — na verdade, um poeta português — disse: “Estamos sempre a nos esforçar para que nossos poemas não tenham palavras de mais, nem de menos”. Na narrativa, personagens tornam-se seres reais, conceitos filosóficos pairam como verdades irrefutáveis. Apesar disso, há quem corra o mundo em busca das sensações vivenciadas nos livros. Viagem perdida. Partir ao mundo exterior em busca da literatura é procurar o inalcançável.
Encontro você no oitavo round, de Caê Guimarães, como o próprio nome demonstra, não é um livro que evoca música, mas luta de boxe e literatura. Trata-se do embate de um boxeador não apenas contra seus adversários, mas contra si mesmo. É o inventário de um caminho que poderia ter sido trilhado de outro modo, quem sabe, vitorioso.
Boxe e literatura já estiveram presentes em diversas obras literárias, e sempre são citados na famosa comparação onde se costuma diferenciar a força do conto ao caráter analítico do romance. Mas tudo não deixa de ser uma grande bobagem. Todos os assuntos humanos são assíduos frequentadores de textos literários, sejam eles de qualquer origem e natureza. O boxe, neste romance, apresenta-se como esforço de autossuperação, ainda que tal tentativa seja mais intelectual do que física.
Narrativa e abordagem
Guimarães, numa investida em primeira pessoa, narra as peripécias e amarguras do seu personagem, Cristiano Machado Amoroso, que tenta escapar da obscuridade: frequenta ringues de periferia, como lutador de boxe. O destino do personagem não deixa de ser interessante. A arte de narrar está bem amarrada, o autor sabe dominá-la, cria boas expectativas para o leitor, sobretudo na parte final, denominada A luta, desenvolvida de acordo com o número de rounds do duelo combinado.
O romance aborda bem a prática do esporte e de sua nomenclatura peculiar, dando os devidos nomes a golpes, a instrumentos de treinamento, revelando como funcionam os bastidores das lutas. Como no futebol, jovens pobres e muitas vezes negros veem nas lutas um modo de ascender socialmente. Em meio a todo este universo, há aproveitadores, como empresários corruptos, que acertam lutas vendidas, treinadores oriundos do meio criminal, policiais infratores, apostadores, etc.
Por outro lado, procurando dar estofo ao espetáculo, há os jornais e as emissoras de TV, que vendem a prata falsificada, transformando a miséria em show. A TV privada, na verdade, não promove o esporte, o que faz é vender a audiência aos anunciantes, e por um preço muito alto. Ótimo, o negócio. Aqui entra a literatura, instigante, capaz de mostrar e discutir o que se supõe normal. Ao dizer que não se deseja ideologizar algum tipo de ação, revela-se o grau avançado da ideologia dominante. Então, é preciso chamar o ladrão. No nosso caso, o escritor. Só ele é capaz de surrupiar e soltar as amarras das pseudoverdades.
Fora do lugar
O que se poderia criticar no livro é um tipo de reflexão muito refinada para alguém que não aparenta ter tal capacidade, o narrador-boxeador. Alguém poderia contrapor dizendo que não se trata, na verdade, de um boxeador, mas de um escritor, já que a literatura dá tal prerrogativa. No entanto, é preciso refletir sobre a questão. Os romances, sobretudo, trabalham com a verossimilhança. Por mais fantasiosa que seja uma narrativa, tanto mais em primeira pessoa onde o narrador cria todo um revestimento de veracidade, como neste livro, há questões que soam fora de lugar. Sabe-se que pesam referências pessoais do personagem, como a decadência, a possibilidade de derrota, o envelhecimento, a pobreza, a luta contra ela, etc. Ainda assim, fica difícil descolar o meio que envolve as lutas da realidade literária que o autor introduz como duplo. Um boxeador de verdade dificilmente chegaria a tal ponto de refinamento existencial e linguístico. Outro ponto muito interessante, mas que tira de foco o assunto principal do romance, é uma história paralela sobre uma vingança pessoal, vivenciada pelo mesmo narrador, que vem à tona perto do final do livro.
O romance apresenta, na verdade, um acerto de contas entre os vários flancos do ser humano, introduzindo duplos muitas vezes interessantes, como força física e força intelectual; habilidade e talento, correção e corrupção, fidelidade e traição. Trata-se do homem cindido, sem possibilidade de um lugar, em fuga constante e sem esconderijo. Mesmo no amor, suas chances são poucas. O que lhe sobra, no universo da narrativa, é a esperança de certa herança literária, possibilidade de deixar o rastro de sua parca existência.
Entre muitos escritores, vem tornando-se comum a investida literária como acerto de contas. Isto quer dizer, usa-se a literatura para que personagens consigam o que a realidade nega ou negou às pessoas do mundo “real”. A investida arrasta atrás de si alguns problemas. A literatura, como realidade intrínseca a ela mesma, possui muito poder, produzindo reflexos na vida real, como a imitação de atitudes e do modo de vida de determinados personagens. Mas tal ação é perigosa e poucas vezes dá resultados concretos. Por outro lado, existem autores que conseguem criar conceitos que se tornam verdades, estes passam a servir como fontes de estudo, de pesquisa, e de teorias filosóficas. Neste último caso, muitas vezes, acerta-se. Suas obras dão origem a uma melhor compreensão do mundo, e mesmo a uma nova mentalidade. Por outro lado, literatura e realidade apresentam alguns problemas. Um exemplo: em épocas de guerra, a literatura não tem força alguma, não pode lutar contra obuses e canhões; mas, em épocas de paz (mesmo que estas sejam bastante fugazes), pode levar mentalidades a compreenderem a importância do diálogo e do respeito ao que o outro tem a dizer. Talvez, assim, diminuam-se futuros conflitos.