O Martín Fierro, de José Hernández, é uma obra singular, supostamente escrita com um objetivo duplo: revelar e exaltar a figura do gaúcho argentino, para ao final transformá-lo de marginal em herói nacional; e inculcar o gosto pela leitura numa parcela da população então inculta. O poema, elevado à condição de livro nacional argentino, foi certamente muito além dos melhores sonhos do autor.
O longo poema de Hernández (1192 estrofes), em dois volumes, narra as desventuras do gaúcho Martín Fierro, entre índios e militares, nas lonjuras do Pampa e dos desertos argentinos. O texto é prenhe de canção e imagem, pois a escrita parece não poder tudo abarcar: “Jamais a língua poderá/ dizer o que hei sofrido”.
O autor usou linguagem inovadora, desviante do espanhol culto da época (terço final do século 19), procurando emular a fala, o léxico e o espírito próprios do gaúcho (“é astuto o coração/ mas a língua não ajuda”). Não é apenas um livro sobre o gaúcho platino, mas sobre uma linguagem peculiar.
A tradução também figura na poesia do autor argentino. O dialeto gauchesco não é a única linguagem da narrativa, pois há também ali um idioma oculto: a língua dos índios, não especificada mas presente. Para mediar, o intérprete: “Veio por fim um ‘língua’/ como quem traz o perdão”.
A obra de Hernández conquistou a eternidade. O que disse o próprio Martín Fierro sobre seu canto vale também para a obra do poeta argentino, no original e em tradução: “O que pinta este pincel/ nem o tempo há de apagar”. Mas os versos seguintes talvez já não sejam tão certos, nem para o original nem para suas versões: “ninguém se há de animar/ a retocar-me a pintura”. O tempo pode não apagá-la, mas certamente a vai retocando, em especial por meio da tradução.
A epopeia pampeana tem várias traduções e adaptações para o português brasileiro. A que me chegou às mãos é a de Ciro Correia França, publicada em 2013 pela Travessa dos Editores. São dela todas as citações aqui inscritas. A edição é bilíngue, adornada com ilustrações de Osvalter e enriquecida com textos ancilares do editor, do tradutor e do próprio autor.
O Martín Fierro representa um grande desafio à tradução, não apenas por ser um longo poema rimado, com métrica fixa, mas também por dar voz e vida a uma fala periférica, repleta de jargões e corruptelas. Em seu prefácio, o editor Mário Hélio Gomes reconheceu essas dificuldades, bem como a habilidade do tradutor para superá-las: “Ciro França não se intimidou com o Martín Fierro e cuidou que ele ‘falasse’ português […] pode-se dizer que o seu Martín Fierro é algo fronteiriço, híbrido, personalizado […] tão paranaense-brasileiro quanto portenho-platino”.
O tradutor de fato não se apequenou diante da tarefa; decidiu também ousar, como muito ousou o autor. Nada lhe escapuliu, certamente animado pelos versos do protagonista: “Que não se me trave a língua/ nem a palavra escapula/ mesmo sendo a coisa peluda,/ farei a sua descrição”. Refez as rimas, manteve a métrica (com ajustes) e lançou mão de farto vocabulário peculiar, ora fronteiriço (mesclando português e espanhol), ora regionalista. Foi inventivo, contornando a impossibilidade da tradução palavra a palavra; mas também literal, segundo ele próprio, “quando os versos permitiam”.
Trata-se, enfim, de um trabalho de largo alento. “Labor dos mais difíceis”, qualificou o editor, inclusive pela “proximidade das línguas e as peculiaridades semânticas, culturais, técnicas”. Mas, no fim das contas, quem julgará a qualidade da obra, seus acertos e desacertos, será o leitor informado. Como inscreveu França em seu posfácio, “…quantos conheçam com propriedade o original, poderão julgar se há ou não semelhança na cópia”.