(06/12/20)
Quando terminei de assistir à série Valéria, que se passa em Madri e tem como protagonista uma escritora às voltas com seus bloqueios criativos e amores igualmente bloqueados, fiquei feliz. Consegui chegar ao fim de uma série um tanto medíocre, mas que tem no último capítulo uma frase redentora que justificou meu tempo perdido. No momento em que descarta (aí vai spoiler) o marido, ela lhe diz algo mais ou menos assim: “Você nunca leu nada do que eu escrevo. Nos meus livros, sou muito mais corajosa do que na realidade. Você não me conhece”. A pessoa com a qual ele havia convivido tanto tempo não era ninguém perto da pessoa real: o ser escrevente.
Sim, o escritor que vive essencialmente de escrever tem uma natureza múltipla. Na superfície, é alguém que finge ser normal, isto é, habitante dos dias comuns, preso à rotina e aos fatos, mas, na verdade, escreve realidades outras ainda que mentalmente e se desdobra em outros seres e cenários; isso pode ser tão estimulante quanto perturbador. Em seus livros, o escritor é, portanto, alguém mais “corajoso”.
Valéria não poderia continuar com um homem que desprezava a sua duplicidade, seus desdobramentos. Ao não visitá-la nas páginas – por medo, preguiça ou descaso simplesmente – ele deixou de conhecê-la a fundo, esqueceu de partilhar os conflitos criados em uma atmosfera de ficção, mas que, na essência, nasceram de sua coragem de dizer/escrever. Por “leitura”, entendo um gesto mais amplo. Ler o outro é algo muito maior do que se imagina; há quem não goste, não queira, não se interesse por este mergulho. Faltam-lhes sobretudo coragem ou vontade.
Conviver com um escritor e não ler o que ele escreve é apostar no fim da relação. E não apenas por vaidade, entendendo que os escritores são de fato muito narcisistas. Os parceiros que se dispõem a ler o texto de seus escritores-amores estão dispostos a conhecer seu lado mais corajoso; é alguém que não tem medo do que irá encontrar. É difícil ler o texto de alguém tão próximo. Pode ser ameaçador. Essa leitura é também um ato de coragem. Como não amar alguém assim?
A reflexão me levou a um outro pensamento: os falsos leitores. São aqueles que passam os olhos em um livro seu e, pelo título, presumem: “Você é tão delicada”.
O primeiro senão é: “delicado” em literatura só serve de elogio quando se refere aos escritores homens. Perceberam isso? Quando um autor escreve delicado ele chegou a um estado superior de humanidade e por isso deve ser celebrado. Quando uma escritora ganha a pecha de “delicada”, é alguém que escreve “de mulher para mulher”. Sejamos francos, é uma realidade. Pensei nisso em relação a um romance meu que se chama Paisagem de porcelana, que é tudo, menos “delicado”. É a história de uma tentativa de assassinato ou suicídio de uma mulher perdida em Amsterdã. Poderia ser delicado quanto à linguagem, mas não creio que este seja o caso. A delicadeza está só no título, talvez por uma iniciativa editorial de criar uma falsa expectativa. Tenho dois livros que podem ser delicados – Nina e a lamparina e Amor de longe. Os demais não são. A proposta é bem outra.
Então, o escritor é aquele que deseja ser conhecido, sim, mas, sobretudo, ser lido em sua complexidade. Me lembrei de uma frase de Clarice Lispector que está em A descoberta do mundo e também em Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres: “Se não há coragem, que não se entre”. Para conviver com um escritor é preciso aceitar o desafio de conhecer os personagens que habitam as suas páginas – seres capazes de matar ou suicidar-se, de inventar circunstâncias desesperadas e desesperadoras.
Para isso, pede-se coragem. Mas pode ser que falte vontade também. Fiquem atentos. Valéria estava certíssima ao descartar o marido não-leitor.
Até fiquei com vontade de ver uma segunda temporada.