Boxe como metáfora ou nem tanto

Se não podemos embarcar numa jornada mundo afora, tentamos passear um pouco mundo adentro
14/11/2020

(14/11/20)

Saí de férias por algumas semanas, relativamente. A ideia de desplugar das obrigações ordinárias seria mais fácil caso não estivéssemos em quarentena, de modo que, se não podemos embarcar numa jornada mundo afora, tentamos passear um pouco mundo adentro.

E como todos passamos por crise financeira, ou, como ouvi outro dia, “vendendo o almoço para comprar a janta”, a saída é procurar o que fazer sem gastar nossos esmirrados vencimentos. Decidi, após zapear nas opções labirínticas das telas, maratonar os filmes do Rocky Balboa.

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Assim como muita gente, assisti a esses filmes de forma pingada ao longo da vida, sem preocupação com sequências, de acordo com o que a Sessão da Tarde ou o Supercine ofereciam. O mesmo, aliás, tinha acontecido com Star Wars: vi apenas O império contra-ataca lá pelos 8 ou 10 anos, ficando na memória por muito tempo que um sujeito poderoso decepou a mão do próprio filho, e logo em seguida teve a cara de pau de chamá-lo: “vem comigo, vamos conquistar tudo”. E o rapaz se jogava no abismo.

Mas rever os blockbusters do Silvester Stallone para refrescar a cuca foi interessante. Assim como o rio do Heráclito, a gente não vê um mesmo filme duas vezes. Com a diferença de que o rio muda, o filme não. Por outro lado, estamos longe de ser os mesmos.

Quando moleque, eu vibrava com as cenas de luta. Agora notei que esses blocos acontecem geralmente apenas no final. A história que vem antes é que importa, ainda mais quando entendemos que os filmes do Rocky Balboa são sobre perder na base da porrada.

Uma curiosidade é que, em 1970, Stallone participou do filme erótico chamado The party at kitty and stud’s, que foi relançado como O garanhão italiano após o sucesso de Rocky. Em português, a alcunha de Balboa soa estranha, pois ele sempre foi fiel à sua Adrian. Creio que o original stallion se atenha mais ao cavalo do que o sentido de pegador no termo traduzido. Nos filmes, o garanhão beija mais é a lona.

Rocky perdeu o treinador Macky, o rival e amigo Apollo, várias lutas, a mulher, a fortuna e ainda se afastou do filho. Se bem me lembro, no mais recente, Creed, ele explica ao rapaz que o lance é o quanto você consegue apanhar e seguir em frente. Um clichê que, com o perdão, cai feito uma luva para o contexto do boxe.

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Naturalmente, vem à mente o Touro indomável com Scorsese e De Niro impecáveis. Mas a cinebiografia de Jake LaMotta me parece colocar o temperamento agressivo do protagonista como a causa da sua decadência.

Por isso é que, questões estéticas à parte, volto ao Rocky Balboa, personagem que é até mezzo triste, mezzo bobão.

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E Drummond sempre acena: “Lutar com palavras/ Parece sem fruto./ Não têm carne e sangue…/ Entretanto, luto”.

Daí leio o romance Encontro você no oitavo round, de Caê Guimarães. O narrador-personagem é um pugilista quarentão que havia desistido de ser escritor: “Mas perceba, uma coisa aproxima boxeadores de escritores. Ambos caminham nas sutilezas das bordas do abismo”.

E, claro, não deixo de associar à imagem do maneta Luke Skywalker se lançando no breu.

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Pausa para um trocadilho de férias: todo lutador de MMA vive dando o braço a torcer.

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Leio também Terra nos cabelos, livro de contos de Tônio Caetano. O primeiro texto, que dá título ao livro, é de uma brutalidade atroz.

Uma avó vai salvar o neto, que apanhava de um grupo na favela, e no meio da cena sobra também para o menino, quase como um rito de passagem e aprendizado: “Bati-lhe até doer nos outros, até revirar estômagos, até abrirem a roda e selarem portas e janelas. Bati e gritei até retumbar bem dentro deles o meu pesar (…)”. Ao fim, a velha está batendo roupas, encerrando a história em que as palavras ligadas a luta e pancadas representam muito da vida de pretos e pobres do Brasil.

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É muito conhecida a citação de Cortázar, fã de boxe, segundo a qual o romance ganha por pontos, e o conto precisa ganhar o leitor por nocaute. Não sei, não sei. Tem romances que nos nocauteiam de pronto, ou então vão batendo ao longo das páginas até um gancho poderoso no último round. E livros de contos que vão nos ganhando por pontos, entre jabs e esquivas, para vencer pelo conjunto.

Mas e a poesia, ganha por jogar a toalha, jogando a briga para outro ringue? Álvaro de Campos, uma das vozes na cuca de Fernando Pessoa, nos diz: “Nunca conheci quem tivesse levado porrada./ Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo”. Depois se coloca como quem foge à luta: “Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado/ Para fora da possibilidade do soco”.

Confesso que nunca curti muito o pessimismo do Álvaro de Campos – fico com o Pessoa ortônimo mesmo. Mas não deixo de achar engraçado um dos versos desse Poema em linha reta, que fala a muita gente que pula de um assalto a outro dentro de casa nos nossos tempos: “Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho”.

Henrique Rodrigues

Nasceu no Rio de Janeiro (RJ) e trabalha na gestão de projetos de incentivo à leitura. É autor de 15 livros, entre romance, poesia, infantis e juvenis. Site: www.henriquerodrigues.net.

Rascunho