🔓 Pequena ilusão de eternidade

Quando uma solidão encontra a outra, e há afeição, a morte começa a parecer algo distante
21/10/2020

O escritor Franz Kafka imaginava uma reunião em que as pessoas aparecessem sem ser convidadas. Na qual poderiam se ver ou conversar sem necessariamente se conhecer direito — ninguém faria oposição à entrada ou saída de ninguém. O autor tcheco, contudo, nunca transformou essa alegoria em texto. Numa célebre crônica, Paulo Mendes Campos sugere o motivo: é porque ela já existe, corporificada sob a forma do bar.

Quando vim morar na Rua Álvaro Ramos, há pouco mais de cinco anos, encontrei no Flor de Botafogo um nome para a imagem concebida por Kafka e redesenhada pelo cronista mineiro. O encanto foi imediato. Já o primeiro dia no novo apartamento, desci para uma cerveja no Flor. Não demorou até que amigos da vizinhança — o Paulo, a Joana, o Jason —­ pintassem na área. Logo conheceria o resto da trupe que fez do querido boteco uma extensão de suas, nossas, casas.

Nas mesinhas dispostas sobre a calçada, ante o olhar sempre atento do imperiano Bira, falamos de dores, as mais fundas, e alegrias. De perdas e ganhos. De livros, futebol, macumba, música, crianças — a vida que corria, apressada, ao menos até pararmos ali.

O bar, dizia o mesmo Mendes Campos, é onde o espinho da solidão dói mais ou menos. E assim sucede porque quando uma solidão encontra a outra, e há afeição, a morte começa a parecer algo distante. Entre conversas, copos americanos, saideiras, um vislumbre de utopia. Nossa pequena ilusão de eternidade.

Mas os bares morrem. E o Flor de Botafogo fechou suas portas. Não numa quarta-feira, como na crônica de Mendes Campos, mas numa sexta, a última de 2018. Nossa trupe passou a se arriscar em outras calçadas, outros balcões. Onde o Flor acaba sendo evocado, porque a saudade é um abismo que a gente precisa sobrevoar de vez em quando.

Ao caminhar pelo Centro por esses dias, me espantei com a quantidade de comércios fechados. Por todo o Rio de Janeiro, e imagino que nas outras cidades o cenário se repita, a pandemia deixa seu terrível lastro. Morrem familiares, amigos, conhecidos e também espaços de pertencimento.

O El Cid, em Copacabana, com sua reluzente decadência; o Hipódromo, no coração do Baixo Gávea; o Esquimó, que por 60 anos serviu almoço com refresco incluído a preço módico aos trabalhadores do Centro; o Almada, na Praça da Bandeira. Todos foram obrigados a encerrar as atividades. Outros estabelecimentos referenciais, como as casas Villarino e Paladino, lutam pela sobrevivência. Já são mais de mil bares e restaurantes fechados somente no Rio. Cada qual, assim como o Flor de Botafogo, encarnava um pequeno universo. Com seus fregueses assíduos, seus códigos, suas histórias.

O poeta Charles Baudelaire escreveu que uma cidade muda mais rápido que um coração mortal. A cidade se reconfigura e nossos afetos, como bússolas alquebradas, insistem em procurar o norte que já não existe. Falar em afeto num tempo em que a frieza contida na expressão “gelo no sangue” virou bordão, pretenso signo de poder, talvez seja um anacronismo. Mas a recordação do Flor de Botafogo e essa tristeza toda subitamente me lembraram outra flor, a de Drummond. Aquela que, ainda desbotada, furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio. Quem sabe ela esteja em algum canto, no estado de semente.

Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’água (Prêmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (Prêmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

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